O jornal “Região de Leiria”, um jornal bem estruturado, bem escrito, graficamente apelativo, um dos bons jornais editados no país que não é só Lisboa, traz-me todas as quintas-feiras à caixa do correio o retrato rigoroso e vigoroso de uma realidade que raramente surge no árido e mimético alinhamento noticioso de não poucos média nacionais. Na edição desta semana, o jornal mostra-nos “os heróis invisíveis que mantêm a sociedade a funcionar,” revela-nos o projecto de reconversão do edifício de uma antiga pousada em biblioteca, divulga a introdução de inteligência artificial na vigilância da floresta a partir da torre da igreja de Bajouca, explica que as piscinas municipais da Batalha vão continuar encerradas porque “apesar das obras que decorrem há mais de cinco meses ainda chove lá dentro”, dá-nos ampla e criteriosa informação sobre a intensa vida cultural na cidade e na região. Mas eu estaciono na página 12 que aplaino suavemente com a palma da mão enquanto vou anotando. É a página onde está Leandro, com a sua bicicleta de amolador. Leandro nasceu há 24 anos em Santa Eufémia e começou a andar desde pequeno com o pai, país fora, flauta e pedra de amolar, pedalando e avisando: “É o amolador, afia facas e tesouras e conserta sombrinhas”. Aos 15 ou 16 anos, conta a repórter Joana Magalhães, “montou sozinho a sua bicicleta de trabalho e começou a fazer alguns serviços em aldeias”. Interrogado sobre o modo de vida que escolheu, responde com um sorriso que não precisa de esmeril. Diz simplesmente: “Apanhei amizade a isto e gosto do que faço”. Morreu há dias na Galiza um homem que também apanhou amizade a isto, a tal ponto que se tornou o maior coleccionador mundial de rodas de afilar (modo galego de dizer rodas de amolar). O escultor Florencio Martinez Vasquez, mais conhecido por Florencio de Arboiro (por ter tomado para apelido o nome da aldeia galega onde nasceu) guardou na sua Casa das Rodas mais de duzentas rodas de amolar. O velho escultor andava pelas margens do rio procurando pedaços de madeira para as suas esculturas. E no tempo sobrante ia reunindo as rodas de afiador. Há tempos, disse ao Faro de Vigo que presumia ser bisneto de afiladores, modo galego de designar os que fazem andar a roda. Por vezes, ainda os escutamos nos bairros da cidade grande, fazendo soar a flauta de Pã. Os mais antigos acreditam que o sopro nos tubos melodiosos anuncia a chuva. Assim sendo, como vaticina o poema de Alberto Pimenta, em ouvindo a música do amolador, nada falta: “Parece que mais ninguém a ouve/ e, pelo silêncio que fica, / parece até que já não há ninguém vivo na rua. / Nem os cães…/ Estarão a ver as inundações na América /. -Os cães também? / Claro, nem ladram. / A televisão inunda-lhes a casa lá longe / e eles gostam. / Também lhes afia as facas/ que trazem na cabeça/ e todos gostam. / Não precisam de amolador. / Não precisam de mais nada”.
Casa das Rodas
A rubrica diária de Fernando Alves nas manhãs da Antena 1, para ouvir e ler.