1.
Fez 86 anos e não sai de casa sem estar absolutamente impecável.
Cabelo pintado sempre de louro, roupa com cores de vida, cara sem brilhos e com as rugas atenuadas, cheiroso…
Quem o vê nos arredores de sua casa, na Margem Sul de Lisboa, não imagina o que este homem passou para ali chegar, o que viu, o que sofreu, o que teve de fazer para sobreviver.
2.
António Calvário era a estrela das estrelas até ao 25 de Abril de 1974.
As mulheres acotovelavam-se para o ver.
Gritavam como ouviam lá fora fazer com os Beatles.
Um dia, na estreia de uma revista, uma fã ficou tão histérica que se atirou do balcão para a plateia – partiu as duas pernas, mas ainda assim, dizia-se na altura que gritara por ele até ao hospital.
Talvez hoje os mais novos não saibam quem ele é.
Por que foi desaparecendo, foi saindo de cena pelo cansaço de estar sempre a tentar esbracejar por um bocadinho de atenção.
Sim, António Calvário tentou de tudo para sobreviver a uma revolução que lhe apontava o dedo – afinal, ele era o exemplo do nacional-cançonetismo, uma ferramenta do salazarismo para adormecer as pessoas com músicas que ajudavam a que tudo ficasse na mesma.
3.
Deixou de ser convidado para cantar nos espetáculos e nas revistas que agora tinham rábulas que lhe eram dedicadas, que o gozavam até às lágrimas.
Para sobreviver cantou em cabarets de má fama. Bares de alterne com champanhe, engates de uma noite e o luxo de os casais poderem dançar agarradinhos ao som da sua voz acompanhada por um órgão de feira.
António aceitou ser palhaço e atração no circo e fez questão de nunca se deixar em casa, de nunca desistir. Fez o que era preciso, muito respeito por isso.
Em 1977, um amigo de esquerda, e uma das maiores figuras da música portuguesa, Nuno Nazareth Fernandes, compôs “Mocidade, Mocidade” para o ajudar a sair do estigma de que era um fascista.
Foi um sucesso enorme.
Porventura o seu último grande sucesso.
4.
António Calvário acaba de fazer 86 anos e continua a pintar o cabelo.
Continua bonito, impecável no que veste, no que se cuida.
Com um enorme respeito pelas pessoas, pelo público, mesmo que as pessoas e o público já não o reconheçam como antes.
O cantor que foi o primeiro representante português no Festival da Canção, filho de um mecânico nascido no Algarve e de uma doméstica que transferiu todas as suas ambições e afetos para aquele filho pródigo, o Tonecas que o país conheceu como António Calvário.
Uma estrela que continua a brilhar numa luz que já não vemos, mas que existe.
Que é real.
E deve ser respeitada.
Texto e programa de Luís Osório
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