Num 22 de outubro de há cem anos redondos, o Diário de Lisboa consagra uma coluna ao peixe “que está a apodrecer em Cezimbra e falta em Lisboa”. O título propaga o fedor de um problema de “transportes e subsistências” para que o antetítulo remete o leitor, embora com menor destaque do que aquele conferido, na mesma página, em duas largas colunas, à sorte do cão “Tejo”, “o amigo mais fiel que Sidónio Pais teve” e que subsistia com a trela da subscrição pública, nem sequer ladrando, enquanto passava a caravana da polémica a que não escapava a Sociedade Protectora dos Animais.
Regressemos à notícia de há cem anos redondos e precisos: “Há dois meses que Lisboa está sem peixe. E o pouco que aparece na Ribeira, vindo de Cezimbra, é vendido por um preço fabuloso. Anteontem”, detalha o repórter, vimos vender pescada a 25$00 o quilo, goraz a 15$00 e dois pargos por 150$00”.
Não tenho, e creio que os ouvintes também não, nesta voraz míngua de euros no bolso, uma razoável tabela de equivalência de preços à mão. Mas seria cometimento apenas acessível a mais do que remediados esportular por dois pargos 150$00, nesse outubro de 1924.
Que diz mais a notícia? Prossegue com o que o articulista considera “o mais curioso de tudo isto”. Passo a ler: “O mais curioso de tudo isto é que, em Cezimbra, a abundância de peixe é tal que os armadores o vendem para adubo de terras por falta de transportes para o enviarem para Lisboa”.
O repórter cuida de saber o que pretendem os “capitães de pesca, que se encontram em greve”. E porque falta o peixe. A resposta aponta o dedo aos armadores e ao comissário dos Abastecimentos. E que reclamam os pescadores? Resposta obtida: “Nós reclamamos um por cento sobre o meio por cento que já temos no produto líquido da venda do peixe”.
Que mudou neste século no quadro que a notícia descreve? Passou a haver câmaras frigoríficas, o peixe já não apodrece a não ser por más práticas que caiam na alçada da ASAE.
Quanto ao mais, os pescadores da barca bela não precisam de ler o Garrett para identificarem as novas sereias, o seu canto lúgubre. Eles partilham com o freguês da Ribeira ou do Livramento a posta do rabo de um lance em que ganham sempre os intermediários.
Outra coisa mudou, contudo, nestes cem anos: Sesimbra já não se escreve com cê e zê, mas com dois esses, ora essa.
Cuidemos, pois, da bolsa e da ortografia.
A quanto está o pargo, esta manhã? E o goraz?