Que azul é este, tão fundo e tão alto, salpicado de pontos de luz? E estes pontos brancos, como leite derramado na noite de África onde um lago nunca dorme, serão uma espécie de escrita primitiva iniciando o seu caminho na página escura do mundo, anofélicas picadas de um alfabeto nascendo em redor do cão que dorme junto ao lago? Estes pontos brancos, letras de luz acabadas de nascer num dialecto ainda desconhecido? Como é que este azul se faz noite profunda nos olhos tintureiros do cão que ainda não surgiu na página, mas surgirá? Não te apresses, folheia devagar este livro, as páginas de um lago escondem perigos submersos ou crescendo na margem, em azul-cobalto ou ultramarino. Aprende com o cão a reconhecer esses perigos. O cão não usa mosquiteiro, nem colete à prova de bala.
Abro o livro “O Tempo do Cão”, de António Jorge Gonçalves e Ondjaki, que chega hoje às livrarias, como se tacteasse no escuro todo o brilho enigmático da noite no lago Tanganica.
O cão deste livro está de olhos abertos e observa o guerrilheiro que veio do outro lado do mar. O mar é um lago maior que o Tanganica e o nome do guerrilheiro sentado a fumar no escuro azul da página que anoitece é maior que a ideia de guerrilha. Há nomes insubmissos como este do guerrilheiro que partilha a água do cantil com o cão vigilante na margem das águas mais fundas de África.
Vai, embrenha-te no azul deste livro, anoitece num sobressalto de metralhadoras, o cão fareja os teus dedos folheando o azul índigo das páginas anoitecidas, o cão gosta de estar perto dos guerrilheiros que fumam charutos no azul escuro da noite.
O guerrilheiro perscruta “a imensidão do lago”, a lonjura das águas tão antigas, as águas fósseis de África. O cão fareja o mais longe do perto, o afago do guerrilheiro entre combates. O cão não sabe o nome do lago que sonha ser mar, não há uma caligrafia de cão para este nome Tanganica, embora haja uma escrita de estrelas em Cão Maior, no azul índigo do sul. O guerrilheiro nunca deu nome ao cão, apenas água do cantil e leite e afagos enquanto se embrenhava na caligrafia da noite, na margem do lago.
Folheia este livro como se farejasses os caminhos mais fundos de África, até que todos os tons de azul escureçam em ti, até que um cão adormeça a teus pés com saudades do guerrilheiro que poderias ter sido.