O jornal O Minho apresenta-nos António Cerveira, 5 anos, o melhor leitor da Biblioteca Municipal Manuel de Boaventura, em Esposende.
Em 2024, António requisitou 118 livros. Dá um livro de três em três dias. Por mais leves que sejam os conteúdos, é obra. Qual Gyokeres. Com esta pedalada, o jovem António (a quem prometo nunca aplicar o carimbo de “leitor compulsivo” ou qualquer outra chancela redutora) estará em vias de se aventurar pelo romance “Crimes de um Usurário”, pelos “Contos do Minho” ou por qualquer outra obra do autor de Vila Chã que a biblioteca de Esposende acolheu como patrono. Não seja para já. “Conforme a vida que se tem/ o verso vem”.
Se António continuar a embrenhar-se na floresta encantada, não apenas na de Sophia, mas na vasta floresta de papel em que a vida de um miúdo se enche de perguntas, de espantos e de outras revelações, estará mais preparado para responder às falsas questões do “país do eufemismo” de que falava o O’Neill, hoje centenário.
Caso a bibliotecária Luísa esteja à escuta na Saca de Orelhas da Rádio, esta manhã, fica o encarecido pedido: abra, neste dia, assim podendo, para o jovem António de cinco anos, a “ampola miraculosa” de um poema do O’Neill. O O’Neill é só pegar-lhe pela ponta de um verso e está desmontada a Feira Cabisbaixa onde o “país dos gigantones” passeia “a ignorância e o papelão”.
E eis que se detém um instante à porta desta sala onde matraqueio as teclas o meu camarada Paulo Alves Guerra que me interpela com um verso do O’Neill por mim deitado ao vento num outro qualquer 19 de Dezembro: “Conforme a vida que se tem / o verso vem”. Memória prodigiosa, a do Paulo.
Dai-me um momento, entretanto, vou só ali espreitar o que se passa na linha lateral. Porque um miúdo, poucos mais anos que António, talvez dez, talvez doze, menos livros requisitados, é um suponhamos, mais bolas apanhadas, é outro, “conforme a vida que se tem / o verso vem”, está a ser maltratado por um steward. Valter Madureira, um grande repórter de rádio e homem de carácter, apercebe-se do choro convulsivo do rapaz, injustamente repreendido pelo steward prepotente, e interpela o grandalhão, sacode-o com palavras duras e justas, como O’Neill ao “país tunante”. Valter conta, na rádio, o episódio inacreditável, denuncia o abuso de poder sobre uma criança movida pela alegria de apanhar bolas, pela alegria de apanhar versos, notas artísticas sobre a relva.
Pudesses tu, António, requisitar um livro para o Natal do apanha-bolas, no “nhurro país que nunca se desdiz”…
Não tem de ser do O’Neill, pode ser do Assis, que sabia de futebol e de manguitos. E alguém te leve, aí na tua Esposende, à esplanada da praia Suave Mar, onde Ruy Belo escreveu sobre a morte de um rio. Assim Cesário te diga, entretanto, alguma coisa, o O’Neill haveria de gostar. Ou o Nobre, a quem o hoje centenário chamou “o grande Só que somos nós”.