Estou a quarenta, cinquenta páginas de um lugar incerto, um lugar a vir, pouca terra muita terra, será isso quando Saul escrever num bilhete “espera por mim”, e isso acontecerá muito adiante da estação de Campanhã e da aldeia da Pedrinha do Sol, onde mora a avó de Saul, o rapaz que, pela primeira vez, viaja sozinho, num comboio pela mão do escritor António Mota.
É como se estivesse a chegar a Espinho, o mais veloz areal correndo do lado de lá da janela por dentro do espanto de um rapaz em sobressalto, tantas memórias e surpresas e sonhos dentro do sono em que esse rapaz chamado Saul pode mergulhar à janela de um comboio, tanto tumulto dentro da cabeça, a mãe reunindo o seu pequeno mundo num saco e a despedir-se dele na linha 5 da Gare do Oriente, vais gostar da Pedrinha do Sol, “há tanta coisa que podes fazer na Pedrinha do Sol, tens lá a minha bicicleta vermelha”.
O escritor António Mota, menino de Vilarelho, Ovil, regressa a esse lugar que só ele sabe identificar na concha matricial da serra da Aboboreira. Certa vez, almoçando na Borges, ele apontou para os lados da serra e eu cuidei vislumbrar, na linha que os seus dedos desenhava, um lugar encantado.
Ele já nos levou a esse lugar mágico num outro livro de há uns quinze anos, “Histórias da Pedrinha do Sol”, onde vive um rapaz que gosta de pássaros e de nuvens e se deixa levar por nuvens e pássaros a lugares improváveis.
Talvez seja ainda esse rapaz aquele que se senta agora ao lado do leitor, confiando-lhe a angústia pela mãe que ficou em Lisboa e vai ser despejada e terá de procurar uma casa onde talvez ele não caiba por agora, de tão acanhada, tão acanhada como o lugar 75 da carruagem 21 em que ele se lança ao seu destino, espera por mim. Saul tacteia as palavras com que partilha um quase pânico, sentado ao lado de um cavalheiro que cruza palavras numa página de jornal, 19 Horizontal: Fazer pela Vida, O rapaz dá um nome a essa invulgar personagem, engenheiro Paulo Freixinho, e eu faço vénia ao escritor António Mota pelo modo como sentou ao lado de Saul o grande cruciverbalista que fez brilhar há anos, na Pedrinha do Sol do nosso vocabulário, a palavra xurdir.
Vou à janela deste livro como se fosse à janela de um comboio, com a minha infância e de tantos outros que a minha fantasia possa inventar. Um livro é o comboio do leitor.
Interrompo a leitura para sacudir as pernas como se o comboio-livro tivesse chegado a um apeadeiro. Levanto-me, vou beber um copo de água, agora que o comboio-livro pára em Pombal. Há um grupo de rapazes e raparigas na plataforma, com as suas mochilas e bonés e t-shirts onde está escrito Férias Divertidas com a União de Freguesias de Campelo e Ovil. Eis como Saul, o menino Mota, cuja infância viaja neste comboio de sonhos e incertezas, nos chamasse ainda e sempre para a sua aldeia de Vilarelho. Vamos, talvez lá encontremos o rapaz de Louredo ou Pedro Alecrim. Entra na carruagem a rapariga do violoncelo e eu envio uma sms ao meu amigo António Mota, pelo meu telemóvel ou por aquele que Saul perde na casa de banho do comboio. E ele conta-me que está a chegar de uma escola onde uma senhora lhe contou que tem no quarto uma fotografia tirou há muitos anos com ele. No mesmo caixilho, ao lado da fotografia, a senhora guarda um santinho.
É o anjo da guarda de Saul e das histórias que Saul inventa à janela de um comboio. Espera por mim.