Passados alguns anos em que os nossos caminhos se cruzaram mais irregularmente, pude ontem demorar um abraço muito apertado a um velho camarada por quem nutro ilimitada admiração. A mais do que firmada obra literária do velho jornalista Rui Ferreira e Sousa, tanto no romance como na dramaturgia que lhe valeu já importantes prémios, tem coabitado serenamente com a luminosa produção poética que ele assina enquanto Jaime Rocha pela elementar razão de que, como explicou há uns anos numa entrevista a Raquel Marinho, “precisava de um nome para poder fugir aos factos”.
Ontem de manhã, eu estava sentado num cadeirão perto dos elevadores da rádio, lendo um dos excelentes contos curtos de “Um tão brando amor”, de Manuel Jorge Marmelo, outro magnífico com quem conversarei esta noite no esplendoroso cenário do mosteiro de Ancede em Baião, quando o Rui irrompeu no átrio, terminada uma entrevista.
A conversa foi breve, arrebatada e feliz, ele sorrindo com aquela serenidade capaz de acolher todos os tumultos, eu imprecando os alçapões tecnológicos e elevando ao domínio da liturgia a demorada urgência da mesa, ele rasgando com benevolência possibilidades de sentido para as frases que nos saiam como peixes voadores. Delírios controlados, notas soltas para reportagens que já não teremos tempo de fazer, teatrais descaminhos, dois amigos trocando palavras que não precisam de ser medidas. Devíamos anotar tudo o que nos sai nesse magma da alegria em rédea solta.
Foi quando nos sentámos, ele abriu um minúsculo bloco: “Diz-me lá o teu telefone”. Reparei que na primeira página do bloco em que ele procurava um espaço em branco, estava desenhado um barco, no qual imaginei Nossa Senhora dos Aflitos levando sobre as ondas a infância nazarena do Rui a pedido do poeta Jaime Rocha. Um barco talvez dormindo no areal, perto do museu do peixe seco. Um barco no bloco de poemas.
Está o Rui a folhear o bloco de poemas de Jaime Rocha, lá está um espaço em branco, um pequeno areal sem barcos, ele anota o número que lhe dito e diz: “Ficas no caderno 38”.
E eu lembrei-me novamente dessa entrevista do Rui a Raquel Marinho. Da passagem em que ele explica a importância do primeiro olhar, da primeira anotação. O poeta partilhando o bloco de notas do jornalista.
Na entrevista, ele entretece o plano da verdade e o da mentira. “Se olharmos para uma árvore”, diz ele, “aquela árvore está ali, mas eu não sei porque é que está ali, não é? E enquanto jornalista eu escreveria: Está ali uma árvore na alameda tal, no número 22. E como poeta escreveria que aquilo não é uma árvore, aquilo é um objecto que foi colocado ali para que eu pudesse escrever um poema sobre o que estou a ver”.
E eu roubo este barco e este encontro fixado no caderno 38 para uma crónica de rádio. Roubo, sem subterfúgios tal como Rui Ferreira e Sousa explicou na entrevista a Raquel Marinho o processo criativo. Está num café, alguém solta uma frase na mesa ao lado, ele anota a frase que parece um barco pousado na infância. “Roubei uma frase ao quotidiano”, diz ele. Daqui para a frente é esperar a onda que leva o barco.
Texto e programa de Fernando Alves
