Ontem, sacudindo a letargia de um outro apagão lento e longo, Joan Manuel Serrat soltou a mediterrânica voz com a qual honrada e garbosamente chegou a velho e com ela encheu o nobre salão da Real Academia Espanhola. Serrat cantou quatro canções de Machado, Antonio Machado, o poeta sevilhano de quem se celebram os 150 anos de nascimento. Serrat tem caminhado longa e fraternalmente com aquele cujos versos não param de caminhar em nós. Foi a voz de Serrat que deu mais vastidão, mais lonjura, aos versos do mais célebre poema de Machado, Cantares, que confrontam o suposto caminhante que levamos às costas. “Caminhante, não há caminho”, avisa Machado pela voz do catalão. Há, no álbum Bienaventurados, de 1987, uma canção de Serrat que nos fala do velho que cada um de nós leva às costas e essa é, também, uma canção que fala de caminhos (“se fossem pondo luzes no caminho / à medida que o coração se acobarda / e os anjos da guarda / dessem sinais de vida”) …
Ontem, Serrat cantou quatro poemas de Machado, acompanhado pelo pianista Ricardo Millares. E os que o escutaram no salão nobre da Real Academia Espahola ouviram ainda, lido pelo actor José Sacristán, o discurso de Machado, escrito para ser lido na cerimónia de entronização académica, mas até agora nunca proferido. Porque as circunstâncias ditaram que Machado se fizesse a outros caminhos, adiando o momento da honraria e do seu cerimonial.
Machado conheceu dois exílios. Um ditado pela morte de Leonor, sua amada, que o levou a despedir-se dos campos de Sória (“Adeus, campos de Sória / já não posso cantar-vos”). Outro que o levou, coração republicano em alvoroço, seis adias atravessando os Pirenéus, em fuga para França, no auge da Guerra Civil. Serrat haveria de cantar esse fim de caminho em Coulliure, numa canção inesquecível: (“sopravam ventos do Sul / e o homem empreendeu viagem. / O seu orgulho, um pouco de fé e um gosto amargo / foram sua bagagem”.
A cerimónia de ontem na Real Academia Espanhola revela-nos um discurso que nunca fora lido pelo seu autor, entretanto lançado ao caminho sem regresso.
O discurso de Machado perguntava, perguntava-nos: “O que é a poesia?”. Essa é, também, uma pergunta que abre caminhos.
Como numa bela canção portuguesa, uma bela cantiga de um marginal do século XIX, ela mostra-nos, com a solenidade necessária, que “os caminhos nunca acabam”.
Eis um formidável exercício para um dia como este, sacudindo a letargia de um apagão lento e longo, resgatando do vento onde nos perdemos deles, poemas e canções que falem de caminhos, porque “qualquer caminho leva a toda a parte”