O jornal El Pais mostrou-nos há dias o arquitecto do macacão cor de laranja que, nos dias livres, deambula por Dakar procurando “devolver o sorriso” a mais de uma centena de “doentes mentais” que vivem nas ruas. O arquitecto do macacão cor de laranja e luvas de látex ergue um esquisso de gestos de gente na capital de um país à míngua de psiquiatras. O repórter José Naranjo cita números do ministério da Saúde: há, no Senegal, 40 psiquiatras para 18 milhões de habitantes. Um responsável da divisão de saúde mental do ministério aplaude, também por isso, o trabalho informal do grupo de voluntários liderado pelo arquitecto do macacão cor de laranja.
O arquitecto do macacão cor de laranja chama-se Ibraihma Seck, tem 39 anos e o seu modo de habitar o mundo e de erguer, na cidade em redor, mais do que fachadas, andaimes e alvenaria, estende uma aba amável àquele verso do peruano César Vallejo, “uma casa vem ao mundo, não quando a acabam de edificar, senão quando começam a habitá-la”. Os gestos de Ibraihma, o arquitecto do macacão cor de laranja”, o modo como pousa as mãos nos ombros de homens caídos por terra e os levanta para o alpendre dos olhares, é a prova de que é possível desenhar moradias invisíveis, com as suas águas-furtadas à medida do coração.
Numa imagem captada pela repórter fotográfica Marta Moreiras, vemos o arquitecto de gente debruçado sobre Mamadou Diallo, um homem que se perdeu de si mesmo numa rua de Dakar. Mamadou está sentado no chão, ao lado de uma folha de palmeira e de um pequeno charco de água talvez da chuva. Passa em fundo uma mulher com um carrego à cabeça, gente que deambula por Dakar distraída dos seus loucos, talvez precisada de uma Ala dos Namorados que deles dê notícia cantada. Marta Moreiras é uma galega que montou base em Dakar mas tem palmilhado a África em redor, registando ásperos dossiers como o da mutilação feminina. Desta vez, ela acrescenta olhos abertos à reportagem de José Naranjo sobre os dias livres de um arquitecto que constrói casas invisíveis para os loucos de Dakar. Ibrahima Seck vai ao encontro deles, leva-lhes comida, chama-os para os balneários públicos onde lhes dá banho, entrega-lhes roupas limpas, regista com eles breves testemunhos que espalha pelas redes sociais. Talvez longínquos familiares se apiedem dos seus loucos perdidos em Dakar.
A reportagem do El Pais não nos mostra o estirador de Ibrahima Seck, nem nos diz se ele se rendeu ao traço de Calatrava ou de Souto de Moura. Mas seguindo os passos do arquitecto do macacão cor de laranja pelas ruas de Dakar subitamente fazem sentido uns versos do bacharel de Direito e ocasional criador de gado Manoel de Barros: “Senhor, ajudai-nos a construir a nossa casa / com janelas de aurora e árvores no quintal. / Árvores que na primavera fiquem cobertas de flores / e ao crepúsculo fiquem cinzentas /como a roupa dos pescadores. / O que desejo é apenas uma casa / Em verdade, não é necessário que seja azul, /nem que tenha cortinas de renda. /Em verdade, nem é necessário que tenha cortinas. / Quero apenas uma casa, em uma rua sem nome”.
Corro as imagens que acompanham a saga do arquitecto do macacão cor de laranja, abraçando os loucos sentados no chão de uma cidade de África. O olhar dele parece erguer o alçado de uma moradia invisível, com os seus inumeráveis corredores. Para efeitos noticiosos, chamemos a essa casa rodeada de árvores que ao crepúsculo ficam cinzentas, Dakar.