A meio da tarde desci as escadas do prédio com a lanterna do telemóvel acesa, cruzei-me com vizinhos que tacteavam no escuro, como se se aventurassem numa caverna com degraus, e fui ler para o jardim. Senti que se instalara nas redondezas uma espécie de confinamento ao contrário, fluxos espontâneos de convivialidade, mesas cheias de patrícios que despejavam garrafas de cerveja como se fosse verão. Não é o melhor cenário para a leitura.
Na mercearia do chinês, a dois passos do supermercado que já tinha fechado, os garrafões de água esgotaram num ápice. Os da esplanada gargalhavam teorias da conspiração. Iam caindo no WhatsApp crescentemente instável, imagens de Putin desligando a ficha ou de uma t-shirt com os dizeres “Eu estive no apagão de 2025” abraçando linhas de alta tensão. Antes de regressar a casa, fui ao carro ouvir a rádio e percebi que até ao jantar talvez nos devêssemos dedicar a exercícios exploratórios como aquele que levou Tales de Mileto a esfregar, com sucesso, uma pele de carneiro num pedaço de âmbar. Abdiquei desse passatempo, até porque nem na loja do chinês deveria encontrar âmbar, quanto mais pele de carneiro. Não se fez luz, portanto. Aliás, como bem explicou o Cesariny, na “Pena Capital”, a luz faz-se “pelo processo / de eliminação de sombras”. O poema alumia-nos com a ideia de que “as sombras têm exaustiva vida própria” e ditam, elas também, uma luz que não ilumina os objectos. Cesariny sugere que “os objectos vivem às escuras / numa perpétua aurora surrealista”. E assim me recolhi aguardando um clarão, madrugada alta, procurando escapar ao “sossego excessivo de noite de província” que, faltando a electricidade, obrigou Álvaro de Campos, já recolhido no leito, a ler, “à luz de uma vela mortiça” a Primeira Epístola aos Coríntios. Era o que havia na mesa de cabeceira, à mão de ler. Tendo mais alternativas de leitura, falta-me golpe de vista para velas mortiças e tinha de me levantar à hora costumeira para encher os sentidos de mundo, já recuperado de uma súbita perda de 15 gigawatts.
É aqui que tiro o chapéu aos bravos da rádio, aos bravos desta rádio que tactearam a cidade procurando abrir caminho onde os semáforos se apagavam, ajudando-nos a contrariar a impotência geral que levou habitantes da grande Madrid apanhados pela oscilação tão forte dos fluxos de potência a dizer ao El País, depois de caminharem durante horas para encontrarem um autocarro que os devolvesse a casa: “Sem os mapas da Google estamos perdidos”.
Esta manhã, jornais de novo espalhados sobre a mesa, alguém diz para o lado, como se respirasse fundo: “Ontem, os tipos dos grelhados no carvão estavam a bombar como gente grande”.
“Espero que tenham percebido”, escreve-me um velho guerreiro do batente hertziano, em mensagem curta, que “a rádio é o meio de uma nação”. Ele escreve “meio” no sentido de media, querendo significar o que alguns, perdidos do latim, designam por mídia.
Outro velho parceiro, o meu querido amigo João Rodrigues, despejou o saco breve e rematou: “Hoje ouvi rádio a pilhas, à moda antiga”.
Assim, baterias recarregadas, talvez hoje dispense o elevador e suba pelas escadas, já com luz de presença e tudo. Viva a rádio.