Pedro Biscaia sabe muito sobre a história, mas também sobre a intimidade dos lugares. As cidades dele, a Figueira da Foz onde nasceu e a Leiria onde vive, no modo como se oferece a delas ser cicerone, são povoadas de vozes que vêm da infância ou de mais lá atrás, das leituras, da investigação, do namoro com os lugares. Já o vi puxar nas suas cidades o fio peripatético do conhecimento e da ternura, desbravando o emaranhado da toponímia e da História. Caminhando nas cidades onde dirigiu escolas e fundou roteiros imprescindíveis, a todo o tempo ele se cruza com amigos ou com antigos alunos que dele colheram as artes da pergunta e do espanto sem as quais pouco se retém do pó dos caminhos. A escrita de Pedro Biscaia é finíssima filigrana com que surpreende e cativa. Pedro tem desbaratado generosamente uma prosa hipnótica e andarilha em jornadas de afirmação alheia ou em combates cívicos a que nunca se furta.
Finalmente, o discreto Pedro Biscaia decidiu saltar o muro da Quinta Nova e entregar-nos um belíssimo, comovente, “Roteiro dos Afectos Maternos” que a Âncora acaba de editar.
É este livro um poliedro de oito faces rodando sobre a tribo de uma imaginária Vila Nova de Jericó e a vida mais ou menos atribulada que coube viver a cada um dos oito narradores. É um hino às mães, a oito vozes. Ouso pensar que o primeiro entre os salteadores da memória quase perdida é Pedro, ele mesmo. Ou poderia ser. Na verdade, o filho de Teresa, a primeira mulher evocada neste livro, é aquele que não chega a ser nomeado, mas deseja para si um nome minúsculo e um lugar minúsculo onde possa deixar correr o fio da própria história. Chamo-lhe Pedro, ao rapaz que queria ser de Ul.
Onde será Ul? O Google explicou-me que se trata de uma aldeia perto de Oliveira de Azeméis, um dos mais curtos nomes de povoados em Portugal, tão clarividente a máquina de desvendar mistérios; há de facto um lugar assim designado, Ul, terra de pão e de mel e de romarias em honra da Senhora das Candeias, já foi aldeia do mês na
National Geographic, houve por lá em tempos muitos moinhos, aproveitando os açudes dos ribeiros de Ul e de Antuã (nome que, para muitos é apenas o de uma área de serviço na A1). É famosa, aliás, a regueifa de Ul. Não é esta a Ul que procuro, como quem procura a sombra de um ulmeiro. Mas, sim, Ul, existe. Nestas páginas.
E será Vila Nova de Jericó a Figueira do menino Pedro de Melo Biscaia? Tanto esperámos por este livro de uma beleza pungente que nos tardava. Porque este livro, este “Roteiro dos Afectos Maternos”, nos leva à Vila Nova de Jericó da memória mais funda da infância de cada um de nós, ao que tínhamos deixado para trás, ao que de nós perdêramos. Como exemplarmente lembra José Luís Peixoto numa frase que Pedro Biscaia puxou para epígrafe deste livro, “o passado é uma história que contamos a nós próprios”.
Lendo este livro, por vezes contendo as lágrimas, somos levados aos primeiros versos daquele poema inesquecível de Drummond, “Por que Deus permite / que as mães vão-se embora?”. Outras vezes a ave dos poemas pousa no nosso ombro aquele verso de Herberto, “As mães são as mais altas coisas que os filhos criam”.
Pedro Biscaia traz de volta, por instantes, as nossas mães, “cada vez mais belas”, a tal ponto que somos levados a pensar “que elas levitam”.