Esta madrugada, no breve percurso entre a portaria geral e o edifício da rádio, fui sobressaltado por um som que parecia de um pássaro imitando o assobio humano. A tal ponto aquele canto me soava estranho, que detive o passo e apurei o ouvido. Vinha o som da copa da árvore mais frondosa e era discreto e cadenciado, semelhante a um assobio, mas despido de estridência. Era apenas um pássaro pontuando discretamente a noite. Ou talvez um pássaro dormindo e sonhando que assobiava como os homens. Aquele som veio pousado no meu ombro e ficou comigo enquanto folheava os jornais. Quando se acendeu a luz no ecrã do computador senti no ombro um breve estremecimento. Um texto do suplemento Babelia, no “El País”, fazia soar a música dos pássaros que inspirou os grandes compositores, de Mozart a Vivaldi, de Beethoven a Bach. O texto é ilustrado por uma das mais surpreendentes e inquietantes obras de Max Ernst, aquela que nos mostra duas crianças ameaçadas por um rouxinol. É o quadro cuja explosão onírica tocou particularmente Leonora Carrington, a escritora que ainda muito jovem viveu dias intensos ao lado do grande pintor dele escutando o esplendor de um sussurro surreal. Há no quadro um portão de madeira que ela transpôs, não obstante dar passagem para um universo assustador, ou talvez por isso.
O mais certo é que o meu pássaro madrugador não seja um rouxinol. De qualquer modo ele pôs-se a assobiar no quadro de Max Ernst e voltou ao meu ombro, antes de saltar para um conto breve de Hans Christian Andersen e adormecer num poema de António Feijó até ao romper do sol. Ao levar-me nessa viagem inesperada, passou a ser um rouxinol. E eu senti o deleite com que os pescadores suspenderam a faina, lá onde o mar tocava os confins do palácio do imperador da China, para escutarem o canto irresistível do rouxinol, o mais belo canto do mundo. Era tão grande esse palácio construído em porcelana, que nem o jardineiro sabia onde o jardim terminava. Soube o imperador deste canto por relatos que lhe chegaram em livros que um outro imperador lhe enviara.
Era tal maravilha coisa de seus domínios. Como poderia não ter chegado até aos seus ouvidos tão formidável canto? Mandou que procurassem o rouxinol e o trouxessem à sua presença. Foram e o trouxeram e cantou. E os olhos do imperador se povoaram de lágrimas. Um dia, veio de longe um novo presente para o imperador, um pássaro mecânico. O pássaro mecânico passou a ser a alegria do palácio pois cantava sem parar, sem cansaço, a qualquer hora. Bastava dar-lhe corda. Um dia, o mecanismo estoirou. Já o rouxinol, relegado para uma sombra do palácio, batera asas. Procurai o conto, dai ao vosso dia, com tal leitura, um galho de reflexão, uma ideia de voo que vos possa levar, também, entretanto, ao poema “Noite Perdida”, de António Feijó. Trata o poema de um rouxinol que passou a noite ao relento, “sempre a cantar, sem dormir/, absorto no pensamento/ de ver uma rosa a abrir”. Tanto cantou, o rouxinol do poema, que cerrou os olhos, cansado, no preciso momento em que, “ao luar e ao relento / a rosa desabrochou”.
Na próxima madrugada, se o pássaro da árvore mais frondosa junto à recepção geral voltar a cantar como se imitasse o assobio humano, procurarei em redor o canteiro das rosas e ficarei em vigília até que o dia rompa. Não vá, entretanto, o pássaro, cansado, adormecer.