Maria Elisabete Silva, 56 anos, natural do Porto, dormita no terminal 1 do aeroporto de Barcelona. Tomemos que aguarda a hora de embarque para a sua cidade, talvez tenha planos para uma ida a Serralves ver os livros de artista de Miró, entre eles um que resulta da colaboração com o dadaísta Tristan Tzara, talvez procure a Casa Escondida, no mar de azulejos da igreja do Carmo, talvez lhe ocorra descer ao rio, caminhando até às Alminhas ou até ao Postigo do Carvão. Se o fim de semana estiver de feição, poderá ocorrer-lhe uma ida a Famalicão, antes que termine, na Fundação Cupertino de Miranda, a exposição “Um Salto no Vazio”, uma vénia aos 100 anos do primeiro manifesto surrealista, talvez dê um salto à Casa-Museu de Camilo, em Seide, talvez termine a noite de amanhã na Casa das Artes de Famalicão onde o grande actor e encenador António Durães apresenta, sobre vídeo de Edgar Pêra, Cavalgada de Mil Amperes, a partir do poema “Sentir Tudo de Todas as Maneiras”, de Álvaro de Campos.
Maria Elisabete Silva, 56 anos, natural do Porto, é agora abordada, no terminal 1 do aeroporto de Barcelona, por um repórter do El Pais. Escutemos. “Durmo aqui”, diz ela, “durmo aqui há 3 meses”.
Há duas noites que os sem abrigo do aeroporto de Barcelona, umas 160 pessoas todas as noites, são desalojados pelos Mossos d’Esquadra. Um pouco antes da meia noite, a polícia pede-lhes que saiam, para a rotina da desinfecção. Às quatro da manhã é-lhes permitido que regressem.
Maria Elisabete Silva, que diz ela? “Tenho medo de passar a noite na cidade”.
No terminal 1, o turbilhão de chegadas e partidas faz lembrar uma passagem do poema “Aeroporto”, de Natália Correia: “Aeroporto humano apenas na retrete / na mansa paranoia da pista de absinto /pousa ariadna fio 727/ gargalhando a saída do lerdo labirinto”.
Maria Elisabete interroga-se, talvez se interrogue, quantos aeroportos há no mundo? Numa consulta apressada, concluo: talvez cinquenta mil. Hei-de perguntar ao Gonçalo Costa Martins, editor de mobilidade urbana na rádio que acende luzes dentro da minha cabeça.
Maria Elisabete faz pim pam pum no mapa aeroportuário dos sem abrigo e fecha os olhos, puxa o cobertor para tapar os ossos, evitando turbulências e ventos fortes, adormece em velocidade de cruzeiro, alfa, bravo, charlie, lá vai ela dentro do sonho de passageiro frequente.
Os sem abrigo dos aeroportos têm a caixa negra em branco, deitam-se em poços de ar a baixa altitude, uma ou outra vez a voz do comandante sacode-os: “Senhores passageiros, vamos dar início a mais um voo sem destino”.
Dedico esta crónica a Andreia Simão, jovem produtora de rádio agora de saída, que todas as manhãs cuidou de mim, garantindo um lugar à janela, com a melhor vista para as nuvens.