Faz hoje cem anos, o grande repórter Norberto Lopes, terminado um longo périplo pelo continente africano, assina, a quase toda a largura da primeira página do Diário de Lisboa, uma cuidada prosa sobre “um belo dia de sol nas ruínas de Cartago”. Há cem anos, o repórter escrevia Cartago com th, “trazendo ainda nos olhos a visão graciosa de Túnis”.
Tudo era mais lento, à época. O texto estava datado de Maio, escrito sob a impressão forte de um lugar tão repetidamente sentenciado pela frase implacável de Catão, o Velho, uma espécie de carimbo final dos discursos do senador romano: “Que Cartago seja destruída”. Catão era quase menino quando se alistou para combater os cartagineses, ficou-lhe aquela divisa como distintivo.
Era esse tempo de há um século desprovido da varinha mágica da instantaneidade. Foi preciso esperar um mês até que ele ganhasse as rotativas do número 48 da Luz Soriano.
Na prosa aquecida por um sol entre ruínas, o repórter destaca os afloramentos de um passado glorioso, “o capitel gracioso duma coluna coríntia (…), a inscrição piedosa duma lápide votiva”, lá onde “não ficou pedra sobre pedra”. A tal ponto que, escreve Norberto Lopes, “o próprio terreno foi salgado – para que nem a haste humilde de uma planta brotasse do seio da terra”. Mas o grande repórter parece colher uma inesperada flor da poeira pisada pelos cavalos de Cipião. E isso o leva a concluir que “a destruição poupou os mortos”, pois “nada restaria hoje da velha Cartago (ele escreve com th, escrevia-se com th) se os romanos não tivessem respeitado, talvez por um temor supersticioso, o interior sagrado das sepulturas”.
Naquele lugar em redor do qual tantas cidades, tantas pegadas de cavalos, foram sobrepostas, um repórter anota, dois mil anos depois, mas ainda num tempo em que a lentidão marcava, mesmo que
ofegante, a sucessão dos dias e o compasso das rotativas, o legado dos arqueólogos, colunas, moedas, frisos de mármore, “a cabeça laureada de um imperador”, Diana acariciando “as hastes de um veado”.
Assim o repórter futuro, centenas de anos adiante de nós, recolha do arqueólogo ou do robot arqueólogo e mostre ao mundo, as cidades agora destruídas e soterradas, lá onde os novos Cipiões alvitraram Rivieras. Ainda que não possa, não queira, ou não saiba, usar palavras tão inebriantes como as que Norberto Lopes resgatou do vento há cem anos diante dos minaretes de Túnis. E que, tal como há cem anos, a atmosfera seja “transparente e doce – como na tarde de Pharsalia” e as flores tenham “o mesmo perfume que enfeitiçava Salambô nas noites de luar”.
Assim os repórteres futuros não se percam de Flaubert, tal como Norberto Lopes não se perdeu.