1.
Nunca tive a oportunidade de conhecer a pessoa por quem tenho mais curiosidade.
Tentei que acontecesse e estava confiante por ter uma cunha impossível de falhar, mas nem o pedido de Jorge Sampaio a fez, no princípio de 1999, aceitar ser por mim entrevistada.
Maria João Pires tem 80 anos e continua a ser uma menina indomável. De corpo franzino, com uns olhos enormes e vivos e uma dificuldade enorme de se relacionar com a agressividade do mundo, com a curiosidade de pessoas como eu.
2.
Quando nasceu, perto do final da Segunda Guerra Mundial, já o seu pai morrera – só o conheceu por fotografias e pela boca da mãe, uma mulher distinta que um dia ofereceu um piano a Maria Regina, sua filha mais velha e irmã de Maria João.
Regina tocava, mas era a mais nova quem deslumbrava.
Aos 3 anos, Maria João Pires imitava a irmã e tocava de ouvido o que ouvia. Aos 4 já tocava em recitais, aos 7 interpretou Mozart num concerto que foi notícia no país, aos 9 conquistou um prémio relevante aberto a pianistas de todas as idades, aos 12 já ensinava, aos 16 completou o curso superior de piano do Conservatório com uma nota final de 20 valores e aos 25 anos ganhou um dos mais relevantes prémios internacionais, um prémio que assinalou os 200 anos de Beethoven.
3.
Maria João Pires tem umas mãos pequeninas que sempre trabalharam a terra e amassaram o pão.
Os grandes pianistas como ela não acreditam antes de perceberem que é verdade – que ela não toca todos os dias, que pratica apenas quando lhe apetece ou quando há um concerto agendado, que gosta de controlar as colheitas e de revolver sementeiras em cima do trator.
4.
Maria João Pires já se zangou com Portugal muitas vezes.
Já fugiu daqui, sem cabeça para salamaleques de ocasião, pouco conformada por ter sido abandonada no seu projeto de Belgais, quinta onde investiu o seu dinheiro para encontrar miúdos em quem valesse a pena apostar.
Felizmente regressou.
E eu continuo a não a conhecer.
Mas sem pressa.
Temos ainda o tempo do mundo porque quando a vejo lá estão os seus olhos grandes de miúda com a vida à frente, uma genial pianista que, sendo tímida, só aguentou tocar uma vida em grandes salas por ter sido sempre o lugar onde se sente mais sozinha, por vezes tão sozinha que se assusta com os aplausos e os bravos de quem a escuta de coração nas mãos.