Georges Remi ficou conhecido mundialmente por um nome mais simples: Hergé, palavra criada pela junção da primeira letra do seu apelido e nome, e que se tornou num sinónimo das potencialidades da BD. A sua carreira desenvolveu-se ao longo de mais de 50 anos, criando em 1929 a sua personagem mais célebre que se tornaria num ícone global.
Falamos de Tintin, o repórter que nunca vimos a exercer essa profissão ao longo de mais de uma vintena de aventuras, mas que viveu peripécias que se conjugaram com os grandes temas da sua era: a exploração de petróleo, a corrida espacial, a guerra fria, o tráfico de escravos, são apenas alguns dos motes das diversas aventuras de Tintin e da sua rica galeria de personagens secundários, entre os amigos e os vilões pelos quatro cantos do planeta.
A personagem evoluiu com o seu autor. Das primeiras histórias mais ingénuas e hoje controversas, Hergé levou Tintin a conhecer outras realidades de uma forma mais realista, graças à procura de mais documentação para criar os ambientes e as personagens de cada história a partir de O Lótus Azul, sem dúvida uma das histórias fundamentais da coleção.
E em 1976 todo um legado já tinha sido estabelecido. Tintin, personagem agora consagrada da BD mundial, teve um último álbum a ser lançado nesse ano, Tintin e os Pícaros, em que reencontra amigos antigos numa história sobre o poder e à qual se adequa aquela máxima de Burt Lancaster em O Leopardo: é preciso que alguma coisa mude para que tudo fique na mesma.
Mas Hergé não queria ficar por aí: nos anos seguintes começou a magicar ideias para uma nova história. O seu interesse crescente pela arte contemporânea levou a que Tintin, Milu, o capitão Haddock e a pandilha do costume se envolvessem com esse mundo em Tintin e a Alph-Art. Mas infelizmente, o autor morreu a 3 de Março de 1983, e a narrativa não passou dos esboços, deixando a história em suspenso, com o nosso herói a ser capturado pelos vilões.
Desde então, e ao contrário de outras personagens suas contemporâneas, não houve mais histórias de Tintin, já que o criador exigiu que a sua criação não passasse para outras mãos depois da sua morte. Em entrevista a Numa Sadoul, Hergé disse mesmo que há muitas coisas que os meus colaboradores podem fazer sem mim, e até melhor do que eu. Mas acho que sou o único que pode dar vida a Tintin, a Haddock, ao Professor Girassol, aos Dupondt, e todas as outras personagens. Tintin sou eu, tal como Flaubert disse que era Madame Bovary.
É claro que estamos a falar em terrenos canónicos e oficiais, porque no reino dos bootlegs há mais do que uma tentativa de concretizar essa história inacabada, e outras aventuras foram criadas, com Tintin a viajar para outros países e até a ser “vítima” de inúmeras paródias.
Mas este universo de tamanhas proporções mediáticas e lucrativas até se tem aguentado bem sem novas histórias, compensando com variadas reedições dos álbuns em diferentes formas e feitios, bem como uma série de ensaios e livros temáticos. No entanto, o espectro do domínio público assombra Tintin: em 2053, quando passarem 70 anos da morte de Hergé, a lei dita que as suas criações entrem no domínio público. E Nick Rodwell, diretor da Moulinsart, que gere a obra de Hergé, avisou em 2013 que poderá ir contra o pedido de Hergé e publicar uma nova história nessa altura para proteger os direitos…
Enfim, até lá muita tinta há-de correr. O que é certo é que os álbuns de Tintin que temos hoje pintam um fresco impressionante do seu tempo, sendo mais do que uma banda desenhada de aventuras. É um retrato do mundo e das várias convulsões do século XX.