Uma canção que só uma mulher podia ter escrito? Ou um homem como Chico Buarque, que tantas vezes soube dar às mulheres, a dor, a abnegação, as feridas incuráveis do coração.
A canção ecoou pela minha casa durante anos. Estava numa cassete. Era a minha mãe que a ouvia. Aquelas palavras faziam-lhe sentido. Mas a versão que se ouvia ali, repetidamente, não era cantada por Chico. Eu, que seguia a minha mãe na escuta, sempre acreditei que a canção era de Maria Bethânia, era na voz dela que o verbo “remoçar” fazia sentido. Nenhum homem podia escrever daquela forma. A não ser Chico.
À luz dos dias de hoje, a canção teria sido escrita com outra cautela. Ou nem sequer sairia da gaveta. Curiosamente, à submissão de uma mulher (que são muitas), soma-se e segue-se o empoderamento – palavra que Chico jamais escreveria. É uma canção/manifesto de orgulho e dor que deu lugar a muitas coisas próximas da felicidade, mas não do esquecimento. É a canção do bandido que pode regressar para perder. Para ver o que perdeu.
Chico tem esta capacidade de ser a mulher sofrida, o bandido sem remédio, e baralhar os papéis todos e até olhar para o passado e dizer de muitas canções suas: já não escreveria isto.
A canção, qualquer uma, deve identificar o seu tempo. Só pode ser uma canção de denúncia se apresentar as dores do lado em que originalmente estavam. Não se falseiam dores ou as canções não seriam eternas.
“Meus Caros Amigos”, o álbum de Chico Buarque onde aparece “Olhos nos Olhos”, foi editado em 1976. Tal como “Pássaro Proibido” de Maria Bethânia.
Uma canção que se partilhou. Um molde que serviu a ambos, mas é de Chico a autoria. Nos seus 80 anos, que siga remoçado.
Texto de Inês Maria Meneses
Ouça Inês Maria Meneses na Antena 1 nas noites de quarta-feira em “Fala com Ela” e, nas manhãs de domingo, com “O Amor É” (ao lado de Júlio Machado Voz).