Através do cinema descobrimos David Lynch e, com os seus filmes, uma voz absolutamente ímpar, que se projetou em títulos marcantes como o foram, entre outros, “Eraserhead” (que em Portugal estreou como “No Céu Tudo É Perfeito), “O Homem Elefante”,“Veludo Azul” ou “Mulholland Drive” (“Cidade dos Sonhos”, no Brasil), sem esquecer a série televisiva “Twin Peaks”, um dos momentos maiores do seu trabalho narrativo ou o muitas vezes injustamente secundarizado “Dune”, instante atípico na sua obra, mas um dos grandes exemplos da melhor ficção científica dos oitentas. Mas depois de “Inland Empire” (“Império dos Sonhos” no Brasil), a sua derradeira longa metragem de ficção, os focos das suas atenções mudaram de rumo, destacando sobretudo um interesse pela música e a redescoberta de uma paixão antiga: a pintura.
Bastava-nos ir bater às portas do seu a cinema para reconhecer que David Lynch gostava de música. E de som em geral… Desde o ruído opressivo que domina “Eraserhead” à cena da “profecia” de “Dune” ao som de Brian Eno, encontrando depois a parceria perfeita ao lado de Angelo Badalamenti (com exemplos maiores de excelência nas bandas sonoras de “Twin Peaks” e do filme “Mulholland Drive”), David Lynch foi afirmando, projeto após projeto, um cuidado com importante protagonismo na hora de pensar que sons e músicas a levar aos seus filmes, contando na esmagadora parte dos seus títulos com a colaboração regular de um dos seus mais firmes parceiros: o compositor Angelo Badalamenti. A canção morava também desde há muito entre as suas esferas de interesse, com exemplos de escolhas certas nas horas certas ao levar Chris Isaak a “Coração Selvagem” ou David Bowie a “Estrada Perdida”.
Esta foi uma relação que se aprofundou ao trabalhar som, sem imagem, quando, uma vez mais com com Angelo Badalamenti, criou dois álbuns em trabalho de colaboração com a cantora Julee Cruise (cuja música levaria a “Twin Peaks” e para quem rodou depois o algo esquecido filme-concerto “Industrial Symphony – Vol 1”). Lynch criou ainda telediscos para os Sparks ou Moby, entre outros. E em 2011 realizou a transmissão, em directo, de um concerto dos Duran Duran para a Internet, da qual nasceria o filme-concerto “Duran Duran Unstaged”, que na verdade seria a sua derradeira longa-metragem.
Aos discos, em nome próprio, chegou em 2001 através da parceria com John Neff, sob a designação BlueBob. Em 2010 via a luz do dia uma outra colaboração, desta vez com Danger Mouse e Sparklehorse, com o título “Dark Night of The Soul”… E só em 2010 seu nome surgiu pela primeira vez na capa de um disco, assinando a música. Aconteceu ao som de “Good Day Today”/“I Know”, um single double A Side que, afinal, não era senão o cartão de visita para um álbum que surgiria um ano depois.
Editado em 2011 o álbum “Crazy Clown Time” não nasceu, por isso, do nada. David Lynch chamava ao som… “blues modernos”. De facto há ali toda uma vontade em encontrar ecos e caminhos para a guitarra eléctrica e uma arquitectura rítmica, lenta e melancólica, que carrega em si genéticas dos blues. Mas a visão de Lynch não se esgota aqui. E se as guitarras, efeitos cénicos (que conferem uma interessante noção de espaço) e vozes são veículo dessas memórias, a verdade é que caminham para um espaço novo, algo assombrado, onde as electrónicas são frequentemente convocadas.
Karen O (dos Yeah Yeah Yeahs) é parceira de valor acrescentado em “Pink’s Dream” (que abre o alinhamento) com sabor a espaço e Oeste reinventado… Vozes processadas via vocoder (mais faladas que cantadas) traçam cenários diferentes entre “Strange and Unproductive Thinking” e “She Rise Up”. Air e Moby surgem como eventuais termos de comparação, respectivamente em “Noah’s Ark” e “Stone’s Gone Up” (este o momento de maior luminosidade pop do álbum). E no alinhamento não falta esse momento magnífico feito de electrónicas que é “Good Day Today”…
Pelo disco passa ainda uma permanente noção de atmosfera, por vezes até mesmo com efeitos de sonoplastia. Cinema, portanto, apenas sem imagem. Afinal, David Lynch mantinha-se fiel aos seus caminhos. E “Crazy Clown Time” era quase como um novo filme seu (ou uma colecção de 14 curtas), contando histórias bizarras e em climas definidos pelo som, a cada ouvinte cabendo a liberdade de criar (ou nem por isso) as suas imagens.