O “Gramofone” de hoje celebra a vida e a obra gravada de uma das maiores fadistas de sempre: Fernanda Maria. Deixou-nos na Segunda-Feira passada, dia 13 de Janeiro, à beira de completar 88 anos. Diria que não há ninguém que ame verdadeiramente o nosso fado que não se impressione com a verdade e a carga emocional desta intérprete. O seu primeiro registo foi editado em 1958 pela casa Valentim de Carvalho e integrava uma série de discos designada “Ronda do Fado”, onde apareceram também Celeste Rodrigues ou Fernando Farinha. Subdividindo-se por diversas casas de fado, a maior das subséries foi precisamente aquela em que se estreou Fernanda Maria, que ocupa o terceiro de quatro volumes dedicados à casa Severa. Um ano depois, chega o disco em que uma foto da fadista, da autoria de Nuno Calvet, é chamada à capa, trazendo a gravação de “Saudade Vai-te Embora” e as guitarras de Francisco Carvalhinho e Martinho d’Assunção.
O sucesso destes primeiros discos é tão grande que vários se sucedem rapidamente, chegando-se a meio do ano de 1960 e as contas a irem no sétimo trabalho já. É então editado o EP “Bairros de Lisboa”, com duas desgarradas com Alfredo Marceneiro. Na realidade, praticamente 50 anos os separavam, mas unia-os este enorme amor ao fado e à forma mais castiça de o cantar. Pouco depois, Fernanda Maria muda de casa editora, passando da Valentim de Carvalho para a Alvorada, onde vem a gravar quase toda a sua obra. No entanto, o seu primeiro álbum foi editado nos EUA pelo selo Monitor em 1962, com o título “Lisboa Antiga”. Como produtor executivo, encontramos Emílio Mateus, falecido em 2024 com 101 anos e que foi o fundador da etiqueta Estúdio.
Fernanda Maria tinha ainda outra faceta: a de autora de textos de canções. Na realidade, desde 1961 que incluía em discos seus algumas letras: “A Razão do Meu Viver”, nesse ano, cantada no fado menor; “Minha Mãe”, no ano seguinte, com música de Carlos da Maia; e “Recordação”, em 1963, com música de José Marques. No ano seguinte, Fernanda Maria abria com o marido a casa de fados “Lisboa à Noite”, onde recebe muitas das outras grandes vozes de então. Um dos grandes sucessos da fadista, “Não Passes com Ela à Minha Rua” (letra de Carlos Conde e música do fado Alberto, de Miguel Ramos) é pulicado em 1968 num álbum de título genérico “Fados”, neste caso com acompanhamento do Trio de Guitarras Lisboa à Noite, com Jaime Santos, Martinho d’Assunção e Liberto Conde. O ritmo frenético de edições de Fernanda Maria não é de facto algo de somenos, até porque, construindo-se a discografia nacional na época fundamentalmente à base dos EPs de 7 polegadas, quase sempre com 4 faixas, esta nossa fadista foi um caso à parte. Na verdade, os álbuns de originais eram o formato de eleição para ela, inscrevendo o seu nome numa reduzidíssima galeria de artistas que viam a sua obra veiculada de forma consistente nesse formato. No capítulo dos álbuns de originais, Fernanda Maria apenas ombreia com Ada de Castro, estando naturalmente Amália Rodrigues noutros mercados, e fora do âmbito do fado a excepção seria José Afonso.
Em 1972 chega o álbum “Fado Mágoas”, com Fernanda Maria acompanhada por Adelino dos Santos, Armandino Maia, José Maria de Carvalho, José Vilela, António Chainho ou José Maria Nóbrega. Um ano depois, eram editados dois álbuns de originais, “De Loucura em Loucura” e “Penso Sempre em Ti”, onde estão representados autores como João Dias, Domingos Gonçalves da Costa, Moniz Pereira, Artur Ribeiro, Jerónimo Bragança ou Álvaro Duarte Simões, numa viagem que nunca parou de maravilhar quem ouve esta fadista que cantou também David Mourão-Ferreira mas que, querendo cantar Fernando Pessoa, foi a tal desaconselhada por receio de que o seu público não entendesse os seus versos. Nos anos 80 e 90, Fernanda Maria não deixou de editar novos trabalhos e até de gravar duetos com Manuel de Almeida e Gonçalo Salgueiro (neste caso, já em 2012), mas o novo século já não veria mais discos em nome próprio desta voz que tantos e tantos continuarão decerto a ter como uma das mais genuínas do nosso fado.