A canção tinha originalmente sido composta para a voz de Brigitte Bardot. Mas, temendo a eventualidade de um escândalo que pudesse gerar, a cantora e atriz, com quem Serge Gainsbourg tivera um caso amoroso, declinou a sugestão. Ao disco chegaria então a voz de uma outra jovem atriz. Uma inglesa que Gainsbourg tinha conhecido pouco tempo antes na rodagem de Slogan e que, antes, tinha já interpretado pequenos papéis em vários filmes, um deles o mítico Blow-Up de Michelangelo Antonioni. Nascida em Londres em 1946, recentemente divorciada de um primeiro casamento com John Barry (então já mundialmente reconhecido pela música para os filmes de James Bond), Jane Birkin estreava-se na música em dueto com Serge Gainsbourg nesse célebre Je t’aime… moi non plus, lançado finalmente em 1969 e que, como Bardot havia antecipado, de facto gerou enorme alarido pelas sugestões abertamente eróticas que passavam pela interpretação. A canção, que se tornaria um clássico da cultura pop francesa, representou a abertura de um caminho para a atriz que, mesmo tendo mantido o cinema entre as suas ações de carreira, daí em diante ficou sobretudo conhecida pelo trabalho na música, criando uma obra em disco que se manteve ativa até há bem pouco tempo, tendo editado em 2020 o seu último álbum Oh! Pardon tu dormais…, que incluía uma colaboração com Etienne Daho, disco que surgiu antes de um acidente vascular em 2021. Jane Birkin foi encontrada sem vida em sua casa este domingo.. Tinha 76 anos.
O desafio de Serge Gainsbourg, com quem depois teve um casamento que os manteve juntos durante 12 anos, findos os quais não deixaram de colaborar profissionalmente, desviou para a música o foco maior das atenções de uma atriz que antes tinha já trabalhado com Richard Lester (o mesmo que assinou os dois primeiros filmes dos Beatles) ou contracenado com um muito jovem Warren Beatty em Kaleidoscope, um filme marcante na contracultura britânica da segunda metade dos anos 60. De facto, depois de iniciado um percurso na música, Jane Birkin reduziu o ritmo de participações em rodagens, tendo mesmo assim contracenado por duas vezes com Peter Ustinov quando este interpretou o papel de Poirot (uma delas uma adaptação de Morte no Nilo) e chegado a colaborar com o realizador James Ivory.
O dueto com Gainsbourg de facto abriu uma porta irresistível, que Jane Birkin atravessou sem abdicar da sua identidade. Mesmo sem dominar o francês e longe de ter técnica vocal, explorou modos de abordar o canto como quem veste a pele de uma personagem e, pela voz, desenha climas e nuances. Ao single de 1969 fez seguir, no mesmo ano, um álbum de estreia partilhado que se apresentou simplesmente com o nome dos dois no título (Jane Birkin + Serge Gainsbourg), no qual ora se apresentam em duetos (como 69 Année Erotique) ou cantam separadamente, aqui interpretando ela as primeiras canções compostas para a sua voz, entre as quais Jane B. A colaboração entre ambos terá muitas expressões nos anos seguintes, uma mais célebres surgindo em 1971 no álbum Histoire de Melody Nelson, de Gainsbourg. Ele surge sempre como o principal compositor nos álbuns a solo que Jane Birkin edita nos anos seguintes, ocasionalmente surgindo nos alinhamentos títulos de outros autores (como Cole Porter ou a dupla Rogers & Hart), apresentando em 1983, no primeiro disco após o divórcio, uma letra de Gainsbourg criada para música de Brahms em Baby Alone in Babylon. A presença do seu maior parceiro artístico não desaparece dos discos de Jane Birkin mesmo após a sua morte (em 1991), tendo o seu primeiro lançamento desta nova fase da sua vida artística, o disco ao vivo Je Suis Venu Te Dire Que Je M’en Vais… (Concert Intégral Au Casino De Paris), editado em 1992, iniciado a afirmação de uma firme vontade em manter viva a relação com as suas canções. As distintas abordagens a canções de Gainsbourg que surgem em discos que edita desde então como Versions Jane (1996), Arabesque (2002), Jane Birkin Sings Serge Gainsbourg Via Japan (2012) ou mais recentemente Le Symphonique (2017) reforçam a solidez desse desejo, fazendo de facto de Jane Birkin a mais frequente e desafiante intérprete da obra do compositor francês. Um estatuto há muito reconhecido e que, em 2006, a juntou aos Franz Ferdinand em A Song for Sorry Angel (versão de Sorry Angel) no tributo Monsieur Gainsbourg Revisited.
O desaparecimento de Gainsbourg deixou um caminho para novos desafios e parcerias. Em À La Légère (1998) cantou Miossec, Zazie ou, pela primeira vez, com Étienne Daho, entre outros mais. Rendez-Vous, disco de 2004, apresentou duetos com Bryan Ferry, Caetano Veloso, Françoise Hardy, Manu Chao, Feist ou Brian Molko (dos Placebo). Em Fictions (2006) escutamo-la a cantar temas de Tom Waits, Rufus Wainwright, dos Divine Comedy, Kate Bush, Neil Young, Arthur H ou Dominique A. E em 2008, no álbum Enfants d’Hiver, juntou vários compositores para dar forma a poemas da sua própria autoria, naquela que é uma das suas melhores coleções de canções. Por sua vez foi convidada a participar em vários discos, como a homenagem a Barbara comandada pelo pianista Alexandre Tharaud (2017) ou The Other Side, álbum de 2014 projeto Wonderland do sueco de origem turca Ilhan Ersahin, no qual participou também Gilberto Gil, assim como em títulos das obras de nomes como Étienne Daho, Hector Zazou, Salvatore Adamo, Alain Souchon, Sylvie Vartan ou Yann Tiersen.
Não há obituário de Jane Birkin que não fale depois da mala criada pela Hermés, sendo também célebres os momentos em que se apresentou publicamente com uma cesta que comprou em Castro Marim (no Algarve). Mas vale a pena não deixar esquecido o trabalho no teatro (entre outros colaborou com Patrice Chéreau), na publicidade (fez uma campanha para Yves Saint Laurent), assim como o trabalho de filantropia por diversas causas, ora colaborando com a Amnistia Internacional ou em projetos de luta contra o vírus VIH.
Texto de Nuno Galopim
O mais recente episódio de Gira Discos, disponível na RTP Play, é dedicado a Jane Birkin.