1.
Esta é uma história desfasada da agenda.
Uma história de um Natal que passou – guardámos as árvores e as luzinhas mais as estrelas em sacos que voltaremos a abrir no final deste ano.
Mas ainda assim, vale a pena voltar atrás.
Fazê-lo pelo José Quadros, um homem misterioso que desapareceu há trinta anos sem deixar rasto nos que o amavam, nos que o gostavam de ouvir, nos que se riam das suas piadas, nos que se preocupavam se estava bem, se precisava de ajuda.
O José era um criador sem obra.
Dava-se com artistas, vagueava pelos bairros movimentados da noite, ouvia cantar, escrevia poemas, bebia, conspirava e era amigo de muita gente.
2.
Do músico Carlos Alberto Moniz que o adorava como se fosse família.
E no Natal havia sempre um lugar para o José Quadros, sempre solitário, sempre com ideias na cabeça, piadas novas ou velhas que todos esqueciam de propósito para serem sempre novas quando as contava.
Na mesa de Natal todos os anos aparecia.
Conheceu a Maria do Amparo e a então jovem Lúcia Moniz.
Conheceu a Idália Serrão e a filha da Idália, a ainda mais nova Inês.
Chegava para ajudar na cozinha e nem sempre avisava que ia. Limitava-se a aparecer com uma garrafa de vinho ou um queijo da ilha ou não trazia nada, não importava.
3.
Eram quase todos ateus à mesa.
Durante muitos anos quase todos comunistas.
Não se falava de Jesus ou do pai Natal, mas comia-se bacalhau ou peru ou alfarrobas, suspiros ou figos passados como era tradição açoriana.
A meia-noite era passada à viola e todos eram jovens, ainda com mais futuro do que passado, gente cheia de sonhos e objetivos que abraçavam o José que era livre, um exemplo de uma liberdade imaginada por idealistas e tolos.
4.
Há trinta anos deixou de aparecer.
Nunca mais foi visto nas ruas da noite ou nos fados ou nas sessões de esclarecimentos ou saraus de poesia.
E nunca mais bateu à porta do Carlos Alberto Moniz ou da Idália, nunca mais chegou sem avisar.
Mas a história não é essa.
A história é que o prato continua todos os anos a ser posto pelo Carlos na mesa de Natal.
Todos os anos, no dia 24 de dezembro, o lugar do José Quadros, artista sem talentos, está posto e quando alguém toca à porta o Carlos estremece pois não sabe se o reconhecerá quando o vir.
Voltou a não aconteceu este ano.
O José tornou a não aparecer.
Mas o prato, mais os talheres e copos, foram os últimos a ser retirados – até ao próximo ano.
E a maravilhosa Inês Fonseca, filha da Idália, criança quando ele desapareceu, compôs-lhe uma música e cantou-a acompanhada ao piano.
Cantou-a na esperança de que o José a pudesse ouvir.
Ou na esperança de que a vida possa oferecer uma explicação para o que não tem explicação.
Texto e programa de Luís Osório
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