1.
António Guterres fará 75 anos no final deste mês.
Nota-se o cansaço e o peso da responsabilidade, mas nota-se também que, nesta última volta da sua vida, regressou ao ponto de partida da juventude.
Em adolescente fez trabalho de voluntariado em bairros sociais. Conheceu gente que o regime de Salazar e Caetano escondia ou se recusava a reconhecer.
Só com as terríveis cheias de 1967 uma parte do país viu que o Estado Novo escondia gente que vivia em barracas, centenas de bairros clandestinos que eram a prova da pornográfica hipocrisia do regime.
O jovem António, caloiro de engenharia no Técnico, militante da JUC, formou as suas ideias nesse trabalho com os mais desfavorecidos. Não se importou de ir, de sujar as mãos, de procurar soluções.
2.
Quase sessenta anos depois, António Guterres está outra vez no terreno com os desfavorecidos.
Como secretário geral das Nações Unidas está a fazer o que muitos não acreditavam ser possível: afrontar Israel e manter-se na primeira linha entre os que recusam a indignidade de um Estado recusar a entrada de camiões com comida, bebida e medicamentos, para salvar milhares e milhares de pessoas esfomeadas, sedentas e feridas ou infetadas.
3.
Não me esqueço do que se disse de Guterres.
Que era cobarde.
Que era medroso.
Que era hesitante.
Que era uma picareta falante.
Que era incapaz de arriscar um fio de cabelo.
Engraçado, não é?
O que fazemos quando julgamos os outros de acordo com os nossos próprios defeitos, o que fazemos, o que dizemos, o que criticamos, o que maldizemos.
Quantas pessoas com a responsabilidade de António Guterres seriam capazes de ter a coragem que ele tem tido?
Quantos teriam a capacidade de resistir à pressão para estarem calados ou para se manterem equidistantes?
Quantos ousariam mostrar ao mundo sabendo que isso lhes trará insegurança e receio permanentes ou o pavor de que em algum momento possam pagar um preço?
4.
António Guterres fá-lo por não aguentar a ideia de adormecer todos os dias com a consciência pesada.
É isso que o move, fazer o que está certo.
Não se importa com o resto.
O resto é menos importante.
E isso orgulha-me.
Por ser português e pela sua imensa coragem.
A coragem que sempre teve.
Texto e programa de Luís Osório
Ouça o “Postal do Dia” na Antena 1, de segunda a sexta-feira, pelas 18h50. Disponível posteriormente em Spotify, Apple Podcasts, Google Podcasts e RTP Play.