1.
O mundo parecia desabar quando Maria Alice Custódio nasceu entre montanhas e serras da Beira Alta.
O pai era oficial da Marinha e a mãe tocava piano e falava francês.
A menina nasceu magrinha num abril de 1944, no final da Segunda Guerra.
Oitenta anos depois o país continua a tratá-la por Lili Caneças, a rainha do jet-set ou a “tia de Cascais”.
2.
Sou insuspeito.
Nunca fui a uma festa nem sequer a uma vernissage.
Não frequento inaugurações, não bebo champanhe, não gosto de canapés e o jet set nada, rigorosamente nada, me diz.
Tenho uma certa arrogância intelectual em relação à maioria das personagens de revistas cor-de-rosa. Não me orgulho por isso, é a verdade.
Não me interesso por elas e elas também não se interessam por mim – estamos bem assim
3.
Mas abro uma exceção para Maria Alice, a Lili.
Ela é diferente da maioria e deve ser reconhecida por isso.
Ri-se de si própria e não tem medo do ridículo.
Vive a vida com prazer de a viver.
Diz coisas que são enormidades, testa os limites à sua maneira e confronta-nos com os nossos próprios preconceitos.
4.
Aos 80 anos diz que que adora o seu corpo.
E jura que os homens e as mulheres a desejam.
Aos 80 anos vai para a discoteca dançar com os netos.
E nas entrevistas fala como se fosse uma princesa sem castelo.
Não tem medo de se aproximar dos políticos, dos encenadores de referência, dos intelectuais.
Vai a jogo sem medo do que possam dela pensar.
5.
Lili fez 80 anos e gosto genuinamente do seu jeito.
Uma mulher que vive num mundo encantado, num mundo que não existe, por sempre se ter recusado a viver na realidade.
Mesmo quando se separou do marido e ficou sem nada, mesmo aí, sem dinheiro e sem holofotes, quis continuar a ser uma princesa.
Quis continuar a ser bonita, a ter boas roupas, a viver para ser vista no mundo que idealizou.
6.
Fez plásticas, foi júri de reality shows, mas nunca deixou de assumir a sua própria tragédia, como se as sombras que carrega pudessem ser o que a distingue.
Gosto de Lili Caneças por ser diferente.
Por ter humor em relação a si própria num mundo em que a maioria dos colunáveis tem horror ao que o mundo possa pensar da sua enormíssima vacuidade.
Lili fez 80 anos e parece feliz na sua profunda dificuldade em sê-lo.
Fez-se a si própria e em frente ao espelho continua a ser a princesa que um dia desejou.
Continua a ser a menina que nascida das montanhas jurou um dia dançar nos melhores salões e ser fotografada nas melhores revistas.
Quis viver no outro lado do espelho.
E cá para nós talvez o tenha conseguido.
Texto e programa de Luís Osório
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