Djavan está de volta com “Vidas Pra Contar”, o seu 23º álbum.
Vidas pra Contar, lançado agora no mercado brasileiro, regista o lado mais pessoal do artista, trazendo lembranças e experiências, dos tempos da vida no Nordeste. Onde fala da mãe, da influência dela sobre si e na música que faz. É um álbum que retrata a sua memória afetiva
São 12 temas que Djavan não reclama como apenas baseadas em factos reais, tão só o seu projeto “mais autobiográfico”.
Site oficial de Djavan
Pode-se começar a audição de "Vidas pra contar" pulando a primeira faixa, assim, apenas como um exercício de análise. E vai-se encontrar um Djavan exercitando no limite o seu estilo consagrado. "Só pra ser o sol" é uma daquelas canções matadoras, de tocar no rádio a vida inteira (e sempre soando nova), de grudar no ouvido. Calcada na linha de baixo de Marcelo Mariano e com desenhos inusitados do naipe de sopros tocado por Jessé Sadoc (trompete) e Marcelo Martins (sax tenor), a canção logo conquista pela fluência melódica dentro de uma estrutura harmônica surpreendente, cheia de modulações. E pela letra, a poética de Djavan burilada como só ele faz, o uso de gírias ("uhu") em meio a imagens inusitadas (como a da moça revirando o armário): "Uhu, você disse que vinha e veio/Não acreditei/E cheguei a tremer/Pensei em você virando armário/Pra chegar em mim/Que bom! Te ver/Tão linda e desejada".
Agora pense na última vez que ouviu uma canção pop tão bem feita no sentido técnico, tão fácil de ouvir e mesmo assim tão diferente de tudo, como essa descrição do espanto do homem diante da beleza da mulher por quem está apaixonado.
Mas pode-se começar a audição, num outro exercício de análise, como deve ser, pela primeira faixa. E aí vai-se encontrar um Djavan diferente do esperado, exercitando-se num outro estilo, só na aparência menos pessoal. O xote "Vida nordestina" traz o compositor dialogando com uma das suas influências mais importantes embora das menos explícitas, Luiz Gonzaga. E a música tem a simplicidade de Gonzaga, com aquele tipo de melodia que parece ter sempre existido mas que foi criada solidamente por um compositor. "Vida nordestina" nasce assim, clássica, e com uma letra que Humberto Teixeira, sei não, até assinaria, sobretudo no paradoxo que propõe ao afirmar logo nos primeiros versos, "A vida não é de festa/Para o povo do sertão" e, alguns versos abaixo, poeticamente negar a própria afirmação: "Mas quando é dia de festa/Todo povo do sertão/Dança para aparar as arestas/Do coração/As moças já tão bonitas/Ficam lindas como quê/E o homem nem acredita/No que vê".
Agora pense na última vez que ouviu uma canção nordestina tão típica e ao mesmo tempo estranhamente original. Como aliás é a vida no sertão ou qualquer vida, original e sempre a mesma. Ou, como na letra de "Vida nordestina": "Até o lar onde falta o pão/Tem lá seus dias de alegria".
"Vidas pra contar", vigésimo terceiro disco de Djavan, conta vidas assim, reais mas sob o filtro da poesia, do espanto pelo detalhe. E revela um compositor tão maduro que consegue ser pessoal seja exercitando seu estilo consagrado, como em "Só pra ser o sol", seja experimentando outras linguagens, como em "Vidas pra contar".
Tal maturidade leva Djavan a exercer seu estilo tão marcante em gêneros diversos de música popular – lembrando que sua primeira educação musical foi, ainda menino em Maceió, na eclética coleção de discos do pai de um amigo de colégio e nos programas de auditório não menos ecléticos da Rádio Nacional, que ouvia com a mãe. Aliás, a canção autobiográfica "Dona do horizonte" narra exatamente essa relação de Djavan com a música a partir da influência da mãe que o fez ouvir Orlando Silva, "Dalva de Oliveira e Angela Maria/Todo dia…".
No passeio por estilos da música popular, "Ânsia de viver" é um samba sincopado típico de Djavan, que nos lembra ser ele autor de clássicos do gênero ("Flor-de-lis", "Fato consumado", etc.). "Não é um bolero" é um bolero estilizado na música e um bolero típico na letra que lamenta a ausência de amor: "Não é um bolero/É amor sincero/Que a tudo resiste/Não a ter ao lado/Me deixa abalado/E nada é mais triste/A vida é à toa/Não fica de boa/Quem não tem um querer". "Se não vira jazz" dialoga com o próprio jazz no peso da introdução instrumental, na forma livre de cantar (com direito a leves improvisos) e na complexidade harmônica, para uma letra que é o oposto do bolero, uma celebração do reencontro e do amor de verdade: "Viver é bom demais/Quando o amor está incluso/É um abuso de perfeição". Já "Vidas pra contar" é uma, ainda que originalíssima, canção de influência ibérica, com toques flamencos, lembrando essa importante herança deixada para a música brasileira, especialmente no Nordeste.
Se "O tal do amor" dialoga com as valsas francesas, e é leve na música para embalar uma letra levíssima ("Sorrir para mim/É quase um jardim/Onde pássaros voam"), "Encontrar-te" é uma daquelas densas baladas de amor com vocação para standard (senão ouçam a introdução do trompete de Jessé Sadoc, emulando as grandes canções de amor de Gershwin ou Jobim), enquanto "Primazia" situa-se num meio terno, é uma canção de amor, quase um fox-trot, leve como a valsa e densa como a balada. Juntas, as três canções formam uma curiosa trilogia que revela, ao cabo, a habilidade de Djavan em falar de amor nas diversas formas de canção, sendo sempre fiel ao seu estilo.
Outras duas canções de "Vidas pra contar" podem ser agrupadas num outro possível conjunto, um díptico em que o diálogo não se dá propriamente com gêneros tradicionais da música popular, mas com o próprio estilo de Djavan. "Aridez" é daquelas canções que prescindem de assinatura, na música acelerada, exuberante, inclassificável e na letra com aquela forma tão própria de Djavan em falar de amor: "Atravesso o deserto escuro/Pra fugir da solidão/Você que é meu farol/Não deixe eu me perder, não/É você quem há de me tirar/Dessa tremenda aridez". De sabor jazzístico, "Enguiçado" é uma observação crítica sobre o comportamento humano: "Tanto nego errado/Enguiçado/Dado a viver/Com a coisa errada/Inclinado a tudo ceder/Se bem combinado/Em qualquer lado pode estar".
A atordoante diversidade musical, que confirma a potencialidade criativa de Djavan, é transformada em linguagem musical pela banda que o acompanha e pelos arranjos do próprio compositor. Pode-se dizer que "Vidas pra contar" é um disco de Djavan e banda, o núcleo rítmico composto por piano (e teclados) de Paulo Calasans, baixo de Marcelo Mariano e bateria de Carlos Bala, além de violões e guitarras de João Castilho e do próprio Djavan e sopros de Jessé Sadoc e Marcelo Martins. Cantor, compositor, letrista, guitarrista e arranjador em todas as faixas, Djavan tem nessa banda de virtuoses a sua voz musical: uma voz que ao mesmo tempo esbanja estilo e por outro conversa com toda a tradição da música popular em que sua mãe o introduziu ainda na infância. Com cuidado e carinho de quem canta para a própria mãe (como confessa em "Dona do horizonte": "Cantava ali só para ela ouvir") é assim que Djavan parece cantar neste "Vidas pra contar".
Hugo Sukman