A produção de telenovelas pela TV Globo contou, sobretudo na década de 70, com uma presença regular de destacados vultos da música popular brasileira nas respetivas trilhas sonoras (ou bandas sonoras, como habitualmente as referimos deste lado do oceano). Se por um lado as opções dotavam as produções de televisão de um conjunto de canções e de artistas com grande poder de comunicação, por outro havia igualmente em cena uma estratégia empresarial já que, em 1969, a própria Globo havia criado a Som Livre, uma editora discográfica que assegurava as edições das bandas sonoras das telenovelas, alargando de resto o seu espectro de ação a outros objetivos para lá desta relação com fenómenos de sucesso no pequeno ecrã, integrando, por esses dias, no seu catálogo nomes como os de Rita Lee, Djavan ou até mesmo a representação local da francesa Françoise Hardy.
Eram contudo as telenovelas o epicentro temático dos grandes lançamentos da Som Livre, numa relação direta com a produção para televisão que levou nomes como os de Maria Bethânia, Gal Costa ou Fafá de Belém a “Gabriela, Cravo e Canela” (1975), Elis Regina, Rita Lee, Nara Leão, Rita Lee e novamente Gal Costa a “O Casarão” (1976), Elza Soares, João Bosco e uma vez mais Bethânia a “O Astro” (1977), numa sucessão de acontecimentos que depois associaram inevitavelmente as Frenéticas e o ‘disco sound’ a “Dancin’ Days” (1978-79), onde encontrávamos um dueto de Chico Buarque com Nara Leão, as Frenéticas ou Jorge Ben Jor ou canções imortais como “Menino do Rio” (de Caetano para a voz de Baby Consuelo) ou “Realce” de Gilberto Gil na “Água Viva” que surgiu já depois da viragem para os oitentas e que juntava ainda a bordo, além de reencontros com Gal, Elis e Bethânia, o magnífico Milton Nascimento, representando de facto esta uma das melhores bandas sonoras deste período.
Produzida em 1973 a partir da peça de teatro “Odorico, o Bem-Amado”, de Dias Gomes (a quem coube de resto a adaptação do texto), “O Bem Amado”, que representou a primeira produção do género a cores, contava a história de um autarca de uma pequena cidade baiana fictícia, Sucupira, que gosta de se ouvir em discursos ensopados em neologismos que ele mesmo inventa. Além do protagonista Odorico Paraguaçu (Paulo Gracindo), o “Bem Amado” fixou na cultura popular personagens como o Zeca Diabo (interpretado por Lima Duarte), o Dirceu Borboleta, as “manas” Cajazeira ou o jegue (um parente dos burros) do Nezinho, o célebre equídeo que a dada altura recebe meio milhar de votos na eleição local… Da memória de uma trama que confrontava comportamentos conservadores enraizados na pequena cidade com uma nova ordem urbana liberal, “O Bem Amado” (que gerou descendências em várias novas adaptações subsequentes) deixou-nos uma magnífica banda sonora na qual se destacava um conjunto de canções inéditas de Toquinho e Vinicius de Moraes entre as quais “Paiol de Pólvora”, “Meu Pai Oxalá”, “Cotidiano Nº2” ou “No Colo da Serra”, num alinhamento no qual se destacavam ainda Maria Creuza em “Garota de Ipanema” e “Se o Amor Voltar”, um dueto desta com Toquinho em “Veja Você” ou peças a solo deste último como “Um Pouco Mais de Consideração” ou o próprio tema-título, interpretado originalmente pelo Coral Som Livre, que a cada episódio se escutava no genérico de abertura e nos créditos. Além do requinte na composição e na escrita a seleção de temas reunidos no disco (e usados na novela) destaca ainda um precioso labor de arranjos de Chiquinho de Moraes, com o mais desafiante “Paiol de Pólvora” entregue a Rogério Duprat. O disco “O Bem Amado – Trilha Sonora Original da Novela” representou parte da oferta discográfica pensada para acompanhar esta histórica produção.
Os 50 anos de “O Bem Amado” são o ponto de partida para o episódio desta semana do “Gira Discos”, que visita ainda canções que passaram por “Gabriela”, “O Casarão”, “Dancin’ Days” e “Água Viva”, notando depois descendências do legado dessa primeira novela a cores tanto em discos recentes de Mart’nália como do próprio Toquinho.