Quis saber quem era, o que fazia aqui. As palavras, que ecoam a memória de uma canção que venceu o Festival da Canção precisamente 20 anos antes da noite em que, em 1994, “Chamar a Música” confirmou que em Sara Tavares havia uma voz com inúmeras possibilidades pela frente, adivinhavam o desenho de um caminho. Nascida em 1978, tinha apenas 15 anos quando levou ao “Chuva de Estrelas” (na SIC) uma impressionante interpretação de “One Moment in Time”, de Whitney Houston. A vitória no Festival da Canção (RTP), com uma canção com letra de Rosa Lobato de Faria e música de Carlos Mota de Oliveira, levou-a a Dublin, conquistando o oitavo lugar no Festival da Eurovisão, uma das melhores classificações alguma vez obtidas por canções portuguesas, sublinhou o talento interpretativo, que pouco depois a levou ora a um tributo a George Gershwin (na Expo 98 e, depois, em disco, ao lado da alemã RIAS Big Band) ou às versões portuguesas dos filmes “O Corcunda de Notre Dame” (que lhe deu de resto uma distinção pela própria Disney como melhor versão internacional de “God Help The Outcasts”) e “Hércules”, por esses dias editando ainda um álbum de estreia ao lado do coro Shout! (1996), no qual apresentava já momentos onde se revelava também como autora.
Foi contudo depois de todas estas primeiras experiências ao longo dos anos 90 que os ecos das palavras cantadas em 1974 por Paulo de Carvalho vincaram um momento de viragem, mostrando o álbum “Mi Ma Bô” sugestões para um novo rumo que levaria Sara Tavares a criar importantes e pioneiras pontes entre a cultura pop urbana, a soul e o funk, espaços entre os quais traçara a formação original de um gosto pela música, e os horizontes que as suas próprias raízes despertaram, começando por olhar para Cabo Verde e alargando depois a sua curiosidade a outros caminhos da África lusófona.
Apesar do impacte mediático dos dois concursos de televisão nos anos 90, que fixaram uma memória coletiva de um modo que, de certa maneira, quase toldou algumas das experiências seguintes, o percurso musical de Sara Tavares ganhou verdadeiro fôlego pessoal a partir de “Mi Ma Bô”, o álbum de 1999 que abriu caminho a uma nova etapa à qual se juntaram depois “Balancê” (2005), “Xinti” (2009) e o mais recente “Fitxadu” (de 2017, com colaborações de Toty Sa’Med, Paulo Flores, Princezito, Nancy Vieira ou Kalaf Epananga, entre outros), aos quais se juntou ainda o registo ao vivo “Alive In Lisboa” (2008).
Este percurso, que foi alargando os leques de referências e os campos de ação, despertando inclusivamente atenções internacionais (os circuitos da world music estavam atentos e o álbum de 2017 chegou mesmo a conhecer uma nomeação para um Grammy Latino na categoria de melhor álbum de música de raiz em língua portuguesa), fez-se fiel a uma personalidade sempre sorridente, tranquila e amiga da partilha, a ela tendo-se juntado, em inúmeras gravações e experiências em palco, nomes como, além dos acima citados, Ala dos Namorados (junto de quem gravou “Solta-se o Beijo”, em 1999), Dany Silva, Júlio Pereira, Melo D, Ana Moura, Boy Ge Mendes, Miroc Paris, Tiago Bettencourt, Uxia, Buraka Som Sistema, Nelly Furtado, António Chainho, Carlão, Slow J, Branko, Plutónio, Moullinex ou os Buraka Som Sistema. À dimensão musical há que juntar aqui a voz atenta ao mundo, fiel a princípios e ideias avessas a quaisquer tipos de discriminação contra os quais, de resto, sempre que pode juntou as suas palavras.
Um tumor cerebral diagnosticado há nove anos obrigou a toda uma alteração de agendas e rotinas, abrindo espaço a longas ausências, tendo contudo neste tempo de luta contra a doença surgido alguns episódios memoráveis, como o álbum “Fitxadu” (2017) ou a colaboração com Branko e Plutónio numa versão de “Ter Peito e Espaço” levada à final da Eurovisão em Lisboa (2018). Nos últimos tempos, apesar das consequências sobre o corpo de anos de combate à doença, tinha revelado sinais das mais recentes etapas desta mesma sua demanda por uma identidade na música, lançando em 2022 “Grog d’Pilha” (com co-autoria de DJ BeBeDera, Fernando Nobre, Eva Cruzeiro e Jeff Hessney) e, já em 2023, “Momento”, canção com produção de Fumaxa, Migz e Ariel. Em setembro fora revelado o single “Kurtidu”, criado ao lado do jovem natural do Mindelo, Berlok, talento emergente no novo universo das batidas, tema que juntou mais um episódio a este percurso que procurava sempre olhar acima das linhas do horizonte. O derradeiro que conhecemos em vida da sua autora que ontem nos deixou, aos 45 anos.
Texto de Nuno Galopim
Esta semana, a Antena 1 presta homenagem a Sara Tavares. De quinta para sexta-feira, o “Gira Discos” de Nuno Galopim será dedicado à cantautora, bem como o “Mixtape” de Noémia Gonçalves, para ouvir no domingo.
Nuno Sardinha, subdiretor da RDP África, recordou a artista no “Programa da Manhã” de segunda-feira (20).