1.
Tínhamos uma roupinha guardada para ela embora soubéssemos que nunca nasceria.
Era uma roupa branquinha, discreta, comprara-a numa loja no Bairro da Estefânia, em Lisboa. Oferecia-a à Ana com quem namorava há pouco. Não queríamos mais filhos, tomávamos as nossas precauções e também por outros motivos era uma quase impossibilidade.
Ofereci-lhe aquele vestidinho como prova de amor. Passaria a representar a filha que nunca teríamos, a nossa utopia que concretizaríamos numa outra vida.
2.
A Ana ficou mesmo grávida, mas ela não nasceu.
Nasceu sim o Afonso, loucura que fintou o desaconselhamento médico, as precauções e até um cordão umbilical com um nó perfeito.
E um ano e meio depois, nasceu ela.
A Benedita, a dona do vestido que acreditámos poder um dia oferecer a uma neta, um vestido branquinho com duas listas discretas, quase impercetíveis, o vestido que usou no seu primeiro dia.
3.
A Benedita faz hoje 5 anos.
É a minha única filha.
Chamamos-lhe Benny.
É parecida com a mãe, tem o nosso mau feitio, mas a doçura compensa cada medição de forças, cada jantar mal jantado, cada noite que exige a cama dos pais.
A Benedita faz-me sentir eterno quando me abraça.
E faz-me sentir finito e frágil quando nela penso – quantos anos terei quando ela tiver vinte anos?
Será que vou estar aqui quando entrar na faculdade?
Será que conhecerei os seus feitos?
Os meus netos e seus filhos, se os tiver?
O seu namorado ou namorada, por que não?
Será que a levarei ao altar se ainda existirem altares?
4.
Hoje, dia dos namorados, a Benedita faz cinco anos.
Obriga-me a vestir a Maria Bubu e a Maria Gonçalves, pede-me para tomar conta das suas bonecas preferidas quando vai ver televisão ou sai para a escola e eu fico em casa.
A Benedita que me agarra a meio da noite quando acorda com sonhos maus, que me agarra como ninguém antes me agarrara:
“O meu papá, o papá mais lindo do mundo, fica comigo meu bonequinho”.
Tenho 52 anos e ela faz hoje cinco.
E o Afonso seis.
Quantos anos terei quando deixarem de precisar de mim?
Quantos anos precisarei de resistir para que não chorem desamparados?
Ela mais o seu vestido discreto que comprei numa loja mágica. Um vestido que não era para ser usado, mas para ser sentido, uma impossibilidade que passaria a ser possível nos nossos sonhos acordados…
— bastava-nos abrir a cómoda e vê-lo por usar.
Texto e programa de Luís Osório
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