1.
É uma história muito bonita, uma das mais bonitas.
Contou-me a filha, Laura Simão.
Filha de um pai alcoólico, afundado nas tabernas.
Os gritos eram permanentes, chegava invariavelmente tombado, Laura ainda não sabia andar e já antecipava com lágrimas sérias o bafo a vinho a entrar pela porta dentro.
2.
A mãe Gina, alentejana de Ervidel, nas profundezas do Alentejo, entregou a bebé à sua irmã Rita.
Com ela estaria segura, com ela e todas as mulheres que lá moravam.
A tia Lala, a tia Zara, o tio Manelinho, a avó Micaela.
A bebé Laura passou a dormir com a tia Rita numa cama de ferro.
E até aos cinco anos vomitava quase todos os dias. Chegou a ir ao Dr. Pinheiro, médico em Beja, que aconselhou as tias a dar-lhe uma bananinha depois dos vómitos.
Os anos foram passando, Laura ficou bem depois de ser operada à garganta, mas nos seus aniversários a mãe Gina nunca a ajudava a soprar as velas – parecia que era pior nas ocasiões festivas, o pai ficava ainda mais bêbado, ainda mais fora de si, ainda mais na fossa.
3.
A Laura licenciou-se em Sociologia e nasceu-lhe o Afonso, o primeiro neto de Gina e do homem a quem não dei nome, a quem apenas chamei pai.
O pai de Laura.
Que foi diagnosticado com um cancro… tinha o Afonso três anos.
Nesse dia deixou de beber.
Foi operado, sobreviveu e encontrou no neto a força que o ajudou a reconstruir a vida.
Ajudou na sua criação.
Ensinou-lhe o nome das árvores e dos animais.
E pela primeira vez na sua vida tornou-se importante para alguém.
4.
Quando Laura fez 52 anos, o pai ofereceu-lhe um ramo com 52 rosas vermelhas.
E em 2016, precisamente no dia em que completou 84 anos, um AVC fê-lo cair.
Não viria a sair dos cuidados intensivos.
Após um mês inconsciente, abriu os olhos no seu último dia. Laura estava à sua beira e o pai disse-lhe a última frase da sua vida:
“Gosto muito de ti, filha”
Beijaram-se e ele fechou os olhos.
Mais apaziguado do que esteve em algum outro dia da sua vida.
Texto e programa de Luís Osório
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