1.
Na apresentação do seu excelente “Ácido”, livro que um dia poderá ser bandeira ou grito deste tempo desesperado, Luís Filipe Sarmento definiu-se como o mais conhecido escritor português entre todos os escritores desconhecidos.
É tudo relativo.
O que é verdadeiramente um escritor conhecido?
É aplaudido por quantas pessoas?
Vinte mil?
Cem mil?
Meio milhão?
Quantos conhecem Herberto Hélder?
E quantos já o leram?
Ou Eduardo Lourenço ou Cesariny?
2.
Luís Filipe Sarmento é um escritor especial.
Poeta, ensaísta, tradutor, produtor.
Foi anos a fio braço-direito de Carlos Pinto Coelho no programa televisivo “Acontece”, foi também jornalista quase uma vida, tem vários prémios internacionais sem nunca ter sido entrevistado por nenhum jornal português de referência, o que não deixa de ser particularmente extraordinário.
Mas todos os dias escreve, todos os dias se agita na procura de um sentido para si e para o mundo, todos os dias sobrevive com o que vai ganhando de direitos de autor ou de presenças em festivais literários nos mais variados lugares… menos Portugal.
3.
“Ácido” é um livro importante, mas ainda assim, ele é o melhor de todos os seus livros.
A sua mãe era trapezista. E o pai um homem de negócios que partiu cedo para outros portos. Amou sempre a mãe, ainda hoje a venera, mas ela era um pássaro livre e voou para longe quando o Luís ainda não fizera 14 anos.
Deu-lhe uma carta de recomendação e o Luís bateu à porta da Pensão Arroz Doce no Bairro Alto, uma casa de meninas que o ampararam e foram rede nesse princípio de adolescência.
4.
Luís Filipe foi ao Jornal República e encontrou Fernando Assis Pacheco que lhe achou graça.
Tornou-se paquete.
E no dia em que fez 14 anos, já com trabalho seguro e quarto asseado, as prostitutas do Arroz Doce cantaram-lhe os parabéns e ofereceram-lhe roupa bonita comprada nas melhores boutiques de Lisboa.
Ali ficou até aos 16 anos.
Deixara de ser moço de recados para passar a ser estagiário de jornalismo.
E depois jornalista.
E depois poeta – o seu primeiro livro foi publicado em 1975 e no próximo ano completará meio século de livros, dezenas de livros publicados, um combate diário pela sobrevivência, mas todos os dias de cabeça erguida, o mais conhecido entre todos os escritores desconhecidos, o mais terno entre todos os criadores malditos, o mais generoso entre todos os que nunca foram bem tratados pelas elites culturais.
Sem ponta de ressentimento.
Talvez apenas Ácido.
Texto e programa de Luís Osório
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