1.
O senhor Cipriano e a Dona Quitéria juntaram a família e fizeram cachupa para que as barrigas dos filhos e sobrinhos não se ressentissem durante o Sporting-Benfica.
Comeu-se e bebeu-se, mas à hora do jogo limpou-se a mesa para que todos se concentrassem no jogo.
O senhor Cipriano sentou-se no melhor lugar, a Dona Quitéria foi-se sentando e levantando, nervosa, inquieta…
… mãe.
2.
O senhor Cipriano talvez seja mais novo do que aparenta. E a Dona Quitéria talvez suporte mais sofrimento do que a felicidade que mostra.
São os pais de Geny Catamo que, nessa noite de festa, deu dois pontapés que levaram à loucura milhões de pessoas em Portugal e em Moçambique.
Dois golos que levaram às lágrimas os que estavam naquela casa humilde nos arredores de Maputo.
Durante toda a madrugada, o Bairro do Aeroporto, fez da noite dia e do descanso um fogo de artifício que ameaçou não parar.
Até os benfiquistas bateram à porta daquela mãe que nunca esperou ser importante.
3.
É que as pessoas que nascem no lado errado do Bairro do Aeroporto só muito dificilmente podem sê-lo.
Claro que há gente feliz, gente que dança, que joga à bola em terra batida, gente que gosta de viver e de partilhar com amigos que nascem da infância.
Mas quem nasce no Bairro do Aeroporto, na maioria das vezes, morre no Bairro do Aeroporto.
4.
Há sempre aviões a partir ou a chegar e há associações culturais e condomínios fechados e de luxo, mas a maioria do bairro continua a ser de gente de pé descalço que joga à bola em terra batida e vive de biscates ou da venda nos mercados.
Geny nasceu numa casa muito pobre. Com irmãos, primos, tios, dificuldades.
O senhor Cipriano e a Dona Quitéria sabiam que tinha jeito para o futebol. Na equipa do bairro jogava mais do que os mais velhos, os amigos chamavam-lhe Messi.
Aos 16 anos um agente perguntou-lhe se queria ir viver para Portugal. Havia a hipótese do FC. Porto, mas a viagem não aconteceu. Uns meses depois surgiu outra hipótese, uma pequena equipa portuguesa com história, o Amora.
5.
A Dona Quitéria e o senhor Cipriano deram a autorização para o menino deixar a terra batida do bairro.
Geny, antes de ir, abraçou a mãe e prometeu-lhe que um dia iria ser um dos melhores do mundo.
Para Dona Quitéria já é o melhor do mundo.
E cada vez que ouve o som de um avião a sobrevoar o bairro, pensa no seu menino e antecipa o dia em que, pela primeira vez na sua vida, deixará o bairro com um bilhete na mão para Lisboa.
Dona Quitéria vive ao lado do aeroporto desde que nasceu, mas nunca entrou num avião.
Só conhece o mundo pela televisão e pelo que lhe dizem do seu Geny.
Texto e programa de Luís Osório
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