1.
Mariana nasceu em Setúbal e a família recebeu-a com festa e planos de felicidade.
Uma família de artistas, médicos e engenheiros que nunca imaginou que aquela menina, hoje com 30 anos, já era especial e diferente da maioria dos bebés no dia em que nasceu.
Ninguém deu por nada, a começar pelos médicos.
Aliás, ninguém deu por nada nos primeiros dois anos.
A mãe, cantora de ópera, e o pai, engenheiro civil, viviam em Lisboa numa casa antiga com soalho de madeira, cada passo dado emitia uma vibração sentida pela bebé.
2.
Mariana era uma menina feliz.
Iluminava o mundo com o seu sorriso, brincava, pedia colo, adormecia às horas certas.
Mas pouco antes de completar dois anos, a educadora pediu para falar com os pais.
A pequena Mariana parecia não ouvir bem.
Um cão ladrava quando os pais iam buscar as crianças, todos os miúdos reagiam ao barulho, menos ela.
Uma consulta de urgência e um diagnóstico insuportável: a Mariana era surda profunda desde nascença, nunca na sua vida ouvira um som, nunca na sua vida poderia ouvir.
3.
A família recebeu a notícia com consternação e surpresa.
Como é que não tinham dado por isso?
A culpa era deles ou da incrível capacidade de adaptação da criança?
Aprenderam a língua gestual em casa e começaram a comunicar assim em família.
Passaram os anos e a Mariana continuou a surpreender com a sua vontade de superação.
Via filmes, desde que legendados.
Ia à ópera “ouvir” a mãe cantar, desde que fosse repertório em língua estrangeira.
Lia tudo o que lhe aparecia, além de escrever e estudar.
4.
Começou por ser aluna no regime especial, mas ainda antes de chegar ao Ensino Secundário não quis continuar a ser tratada distintivamente. Sabia ler os lábios, compreendia as expressões, tinha os livros e sabia usar ferramentas tecnológicas que permitiam transcrever as aulas.
Não precisava de mais nada.
Teve sempre excelentes notas e em casa nunca ninguém duvidou que iria conseguir ser a primeira médica em Portugal surda de nascença.
Ninguém duvidou que ela conseguiria ser a primeira médica em Portugal que nunca ouviu ou ouvirá um som.
Passaram trinta anos desde o dia em que nasceu.
E tudo se confirmou, Mariana é médica e está a completar o internato.
Passou por todas as provas, por todos os desafios, dúvidas e obstáculos.
Comunica com os doentes sem precisar de ajuda.
Vive com o marido por quem é muito apaixonada, tem um cão, gosta de cozinhar e de fotografar, adora viajar e só tem mesmo pena de não poder ouvir a sua mãe a cantar.
Seria a primeira coisa que Mariana Couto Bártolo ouviria se o pudesse.
Texto e programa de Luís Osório
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