1.
Corre todos os dias que pode e no lugar que calha. Na sua mala traz o equipamento preparado e quando se faz à estrada é em silêncio que vai, sempre sozinha e sem música, sem distrações do essencial, só precisa do chão e de ouvir a respiração e os ruidosos pensamentos.
Só precisa de sentir o cansaço e as suas limitações, de perceber o tamanho da sua superação, de reforçar em cada quilómetro a diferença entre essencial e acessório, entre o supérfluo e o que conta.
O relógio custou-lhe dez euros e só marca os quilómetros e o tempo. Não sabe quantos faz ou a velocidade a que corre, isso nada lhe interessa.
2.
Filipa Elvas começou a correr aos 35 anos, já ganhou três maratonas e nunca repete a mesma prova ou cidade, mas este postal não é sobre corridas.
Nem sobre o seu trabalho como assistente de bordo na TAP há quase vinte anos, uma das mais respeitadas e queridas profissionais da nossa companhia aérea.
Ou do mundo que conhece, da Muralha da China, da Gronelândia, dos desertos mais inóspitos.
3.
Preciso de te contar do que faz quando não está a correr ou num avião a caminho de algum lugar ou de regresso a Lisboa.
O que ela faz quando está em casa.
É simples.
Quando tem uns dias de descanso procura no lixo, nos caixotes das ruas, às portas dos prédios, em becos abandonados ou sucatas improvisadas.
A Filipa procura o que as outras pessoas já não querem.
Cadeiras, sofás, mesas, molduras, gira-discos, pinheiros abandonados do Natal, livros, plantas, carrinhos de bebé e tudo o que acha interessante.
Quanto mais precisam de restauro mais depressa a Filipa as leva para casa.
E depois no seu apartamento, frente ao mar de Paço de Arcos, recupera cada uma das peças como se fosse uma médica de objetos… uma doutora brinquedos diria a minha filha Benedita.
4.
A sua casa é feita das recordações das corridas e das viagens mais o que recuperou, coisas tornadas vida por terem o seu esforço, acompanhamento e amor.
Coisas salvas do fim e que lhe agradecem com uma vida em dobro, como se fossem animais recuperados de um albergue de cães ou gatos.
Não sei muito sobre Filipa Elvas.
Nasceu em Lisboa, tem 48 anos e um sorriso iluminado.
Não sei dos pais, dos fracassos, das portas que não entrou, se é casada ou solteira, se tem filhos ou não.
Não procurei saber por nada disso ser importante nesta história de fábula de uma mulher que quando chega a casa é recebida num silêncio diferente do nosso – o silêncio feliz e agradecido de todos os objetos que resgatou do esquecimento.
Texto e programa de Luís Osório
Ouça o “Postal do Dia” na Antena 1, de segunda a sexta-feira, pelas 18h50. Disponível posteriormente em Spotify, Apple Podcasts, Google Podcasts e RTP Play.