1.
Recebi a notícia como se ela não fosse grande, como se não fosse possível.
Ri-me.
Vi outra vez os números.
Levantei-me e voltei a sentar-me por a cabeça ter ficado à roda. Tornei a sentir um tremor no corpo parecido ao de quando deixei há uns anos de tomar uns comprimidos sem fazer o desmame.
Conferi o resultado e fiquei depois num longo silêncio. Deitei-me a olhar para o teto, pensei nos meus filhos e no que me apetecia fazer – aproveitava para dar uma volta à minha vida? Despejava o armário de roupas velhas, começava a ver casas e contratava um motorista? Desaparecia durante um ano para dar uma volta ao mundo?
2.
232 milhões de euros, meu Deus!
Sim, fui eu.
Não consigo dizer isto de outra maneira, sou eu o novo excêntrico, o vencedor improvável do Euromilhões, posso finalmente fazer o que me der na real gana.
Foi um processo fácil.
Cheguei à Santa Casa e fizeram-me a transferência do dinheiro com o abatimento de impostos respetivo.
3.
Não sei como estas coisas se sabem, mas na última hora recebi mais de dez telefonemas de gente simpática que sabe muito bem o que devo fazer para multiplicar a massa.
Na última hora já me disseram que dinheiro puxa dinheiro ou que é uma treta quando dizem que o ouro não dá felicidade.
Fui contactado por dois presidentes de bancos, três administradores de empresas financeiras, um especialista em bolsa e outro de negócios imobiliários, amigos que já não via há muito, família afastada e primos que nem sabia que existiam.
Fiquei contente por isso.
Felizmente ainda se lembravam de mim.
4.
Este será o meu último postal do dia.
Afinal, sou multimilionário.
Saio daqui e vou para o aeroporto. Tenho uma operação amanhã em Istambul para pôr cabelo e fazer um longo check-up para perceber como estou.
Reservei cinco milhões, uma pequena gota de água, para comprar uma moradia com 500 metros quadrados, duas piscinas, uma delas interior e aquecida, uma sala de cinema e uma decoração minimalista.
Faço 53 anos em setembro e sou podre de rico.
Para a semana terei uma reunião com uma governanta japonesa, dar-lhe-ei carta branca para contratar o pessoal que desejar.
Quero ver espetáculos, viajar todos os meses, ter casas em várias capitais e o dinheiro continuará a render em paraísos fiscais onde me tornarei ganancioso como os tipos a quem critiquei até ao dia em que me tornei num deles.
232 milhões de euros!
Era bom, não era?
Agora que ninguém nos ouve, só entre nós, só ao ouvido um do outro, consegues dizer-me que não te passou pela cabeça o que farias se os tivesses ganho?
É bom sonhar.
Mas voltarei na 2.ª feira para mais um postal.
E tão teso como hoje.
Texto e programa de Luís Osório
Ouça o “Postal do Dia” na Antena 1, de segunda a sexta-feira, pelas 18h50. Disponível posteriormente em Spotify, Apple Podcasts, Google Podcasts e RTP Play.