1.
Mesmo que Sonboon tivesse memória não se lembraria do dia em que foi capturada.
Passou demasiado tempo, mais de 80 anos.
Diz-se que os elefantes têm memória.
Que não esquecem vozes e lugares.
Que reconhecem com precisão o sítio onde nasceram ou desejam morrer.
Sonboon é uma elefanta, mas sem qualquer memória dos poucos dias em que foi livre. O pouquíssimo tempo em que não esteve acorrentada.
Sim, durante oito décadas nunca se deitou.
Oitenta anos com grilhetas nos tornozelos e sem nunca ter deixado de dormir em pé. Não se pôde deitar um único dia.
2.
Foram também poucas as semanas em que não teve de transportar turistas ao lombo.
Muitos turistas por dia e muitos ao mesmo tempo, três, quatro, cinco alancados e a usarem-na como besta de circo.
Sem direito a descansar, a comer o mínimo possível.
Oitenta anos disto até que em março, fez agora seis meses, uma fundação que gere um santuário de elefantes convenceu o dono de Sonboon a libertá-la de mais trabalhos.
3.
Consegues imaginar o momento em que se libertou?
Consegues colocar-te no lugar da velha elefanta?
Agrilhoada durante 80 anos.
Impossibilitada de se deitar.
Com as patas marcadas de sangue pisado transformado em pele e o corpo “tatuado” do peso dos turistas.
Consegues imaginar o instante em que lhe tiraram os ferros dos tornozelos?
O instante em que se estendeu pela primeira vez numa caminha feita de areia?
O momento em que teve só para si um espaço de uma liberdade que ela não sabia sequer que existia?
4.
Todos os voluntários e tratadores esperaram que ela fizesse o mesmo que os outros elefantes.
Que demorasse o seu tempo.
Pelo menos duas semanas era o que antecipavam que precisasse para se deitar.
Só que não.
Sonboon deitou-se na primeira noite.
Absolutamente exausta.
Absolutamente alheia ao barulho à volta.
Deitou-se e dormiu como uma pedra.
E quando acordou não conseguiu levantar-se.
Perdeu a calma, gritou no seu modo de gritar e por fim deixou que a ajudassem, um guindaste levantou-a com a ajuda dos veterinários e tratadores.
Que a têm ajudado todos os dias.
Que se têm entusiasmado com os progressos.
Está menos magra, tem a pele menos seca e os dentes mais bem tratados.
Deita-se e levanta-se.
Vive feliz e parece agradecer com os olhos quando as pessoas que a salvaram se aproximam.
Sonboon tem mais de 80 anos.
Nasceu durante a segunda guerra mundial
Viveu em permanente escravidão até ao dia em que se deitou pela primeira vez e descobriu que os sonhos são outros quando se adormece sem grilhetas.
Seremos assim tão diferentes?
Texto e programa de Luís Osório
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