Álvaro Pombo, o novelista espanhol que acaba de arrebatar o prémio Umbral, é um homem antigo e sábio que põe na boca da personagem central do seu último livro os formidáveis versos de António Machado: “o rosto que vês não é rosto porque tu o estás vendo; é rosto porque te vê”. Ao repetir esses versos numa entrevista recente, ele reforça a ideia com estas palavras: “Não somos nada sem o olhar do outro”. Na verdade, essa é a fortaleza que a todo o tempo procuramos conquistar: a atenção do outro, a aprovação ou a ira do outro, o olhar do outro.
Lembro-me de uma magnífica entrevista que Ferreira Gullar fez há muitos anos a João Cabral de Melo Neto (coisa bonita, poetas entrevistando poetas, o que não se vê muito por cá).
A dado momento da conversa em que fazia também de perguntador, Ferreira Gullar enaltece a circunstância de não haver “eu” nos poemas de João Cabral de Melo Neto, mas “ele”. Leitura de Ferreira Gullar: “Quanto mais faz isso, mais o pessoal quer conhecer o “eu” que está por detrás desse “ele”.
Certa vez tive a felicidade de ver em Singeverga a janela de onde Daniel Faria, um extraordinário poeta que morreu jovem, contemplava as begónias. Dava para um claustro no qual caminhavam, orando, os outros monges beneditinos.
Imaginemos que entre os monges caminha um tal Pessoa quando lhe surge esta pergunta: “Como é por dentro outra pessoa?” Ricardo Reis, na sua sombra, suspira outro verso, outro modo de rezar: “Se recordo quem fui, outrem me vejo”.
Em voz ténue, em voz de claustro, que as paredes têm ouvidos, responde o Pessoa: “Os outros nunca sentem. Quem sente somos nós”.
Somos, nesse caso, os outros de outrem.
Hoje diz-se, avulsamente, na bancada parlamentar, na entrevista em horário nobre, na vacuidade eufórica das campanhas: “As pessoas”. Não há maneira mais impessoal de designar outrem.
Nas televisões, os comentadores saúdam os parceiros de painel e acrescentam um condescendente aceno “lá para casa”, designando esse lugar subterrâneo em que vivem “as pessoas”. “Lá em casa” é onde estão os outros. É a mediática terra de ninguém onde estão os outros.
Deixai que chame para fim de conversa o grande Paulo Leminski. Ele traz na mão uma folha com o poema “Contranarciso”:
“Em mim/ vejo o outro/ e outro/ e outro / enfim, dezenas/ trens passando / vagões cheios de gente / centenas/ O outro que há em mim/ é você/ você/ você/ Assim como/ eu estou em você/ eu estou nele/ em nós/ E só quando/ estamos em nós/ estamos em paz/ mesmo que estejamos a sós”.