1.
Foi para a Catedral de Notre-Dame que a minha mãe fugiu quando teve a certeza absoluta de que o homem da sua vida não lhe estava destinado.
Foi lá que agradeceu ter-me na barriga.
E foi lá que decidiu regressar a Lisboa para que eu pudesse nascer protegido pela exclusividade do seu amor.
Sempre que nos aproximávamos num abraço eu pedia-lhe para ela me contar.
– Mãe, lembras-te de quando vivíamos um para o outro?
– Mãe, e quando fugiste para Notre-Dame. Contas-me?
2.
Ela era uma miúda com urgência de vida.
Adorava a Catedral de Paris por ser o lugar onde talvez Deus lhe permitisse encontrar Quasimodo, o corcunda terno que ela aprendera a conhecer no livro de sonhar de Victor Hugo quando esteve internada dez anos no sanatório.
Também ela podia ter ficado deformada e por isso arranjara amigos imaginários, monstros que ela tornou íntimos.
Talvez nos seus pensamentos de miúda tenha pensado em ser a cigana Esmeralda, única capaz de resgatar das sombras os mais miseráveis entre os miseráveis, os mais corcundas entre os corcundas.
3.
Foi em tudo isto que pensei na cerimónia de reabertura de Notre-Dame.
Também na reabilitação de Joana D’Arc quase trinta anos após ter sido queimada viva pela Inquisição.
Também na Revolução Francesa que transformou a Catedral num gigantesco depósito de vinho.
Também na coroação de Napoleão.
Também nos sinos da libertação de Paris das garras nazis.
Mas sobretudo na mãe que eu não conheci.
A mãe antes de mim.
A correr para a Catedral em lágrimas comigo na barriga.
A rezar a Nossa Senhora e a pedir-lhe orientação.
À procura do monstro que a salvasse.
Um monstro que não apareceu para a arrebatar num abraço que provaria que ela era, sem qualquer dúvida, Esmeralda, a cigana de olhos grandes que nascera para cumprir a profecia.
Tudo se teria composto, mãe.
Tudo se teria composto.