1.
O Benfica tem dois jogadores turcos, mas um deles reza todos os dias virado para Meca e agradece o milagre de estar aqui.
Chama-se Kerem Aktürkoğlu e nasceu na cidade de Ísmit por onde passa o Mar de Mármara, a cem quilómetros de Istambul.
Quando tinha dez meses a terra tremeu como nunca antes naquele lugar.
Morreram mais de vinte mil pessoas e a família de Kerem chorou-o por antecipação – o bebé fora engolido pelos escombros, não havia salvação possível.
2.
Largas horas depois, já depois de amanhecer, o avô ouviu um choro apagado, um choro sem energia.
O pequeno neto estava quase soterrado, mas por milagre o seu corpo fora protegido por um socalco de areia, uma parede de entulho que impediu a terra de o engolir.
O avô pegou no menino e os pais choraram-no de alegria.
3.
Passou o tempo e Kerem tornou-se jogador de futebol, um dos melhores futebolistas turcos, mas a sua profissão não é a coisa mais importante da sua vida.
Kerem Aktürkoğlu parece tocado por uma responsabilidade maior, um compromisso que o obriga a estar atento ao mundo e às suas tragédias, como se aquilo que lhe aconteceu, esse milagre inexplicável, tivesse uma contrapartida: ser a melhor pessoa possível.
Por isso, utiliza uma parte das férias para fazer trabalho voluntário nos sítios onde é preciso. Lugares dizimados por terramotos, por guerras, por tragédias que marcam inocentes para a vida.
Participa em campanhas, oferece donativos, arregimenta vontades.
4.
O Benfica tem dois jogadores turcos, mas um deles é um milagre.
Um milagre que o fez pensar bastante sobre o destino e o plano que Deus tem para si.
Talvez seja essa a razão para recriar em cada golo um feitiço de Harry Potter, o bruxo do bem que, como ele, tem uma marca de nascença, a marca do que não se explica, do que não se entende com palavras.
A marca dos que passam pela vida e sentem a responsabilidade de pagar uma dívida que não parece ser daqui.