Notícia breve na primeira página do Diário de Lisboa de 12 de Março de há cem anos: “Comemorando o centenário de Camilo, haverá na próxima segunda feira tolerância de ponto nas repartições públicas e feriado nos estabelecimentos oficiais de ensino”.
Na véspera o mesmo jornal anunciara que a 16 seria posto à venda “um interessante opúsculo intitulado ‘Paisagem nas Obras de Camilo e Eça’, com um retrato e uma carta autógrafa de Camilo, de que é autor o brilhantíssimo jornalista e homem de letras Bourbon e Menezes”.
Cem anos volvidos, o concelho de Baião, onde a ficção queirosiana se fez pedra e geografia em Tormes, identifica no território marcas da presença de Camilo. E elas são várias, não apenas num certo palacete da Teixeira, onde se acolheu a Doida do Candal. São tantas as pegadas do andarilho de tanto Norte, cuja liteira parou mais do que uma vez em Ovelhinha, em trânsito para Amarante. Nessa aldeia incendiada pelos franceses nasceu o pão de Padronelo, cuja fama ainda hoje persiste. Mas por certo não existirá a mesa onde Camilo fez sentar as personagens de O Santo da Montanha. Foi nessa dobra de uma jornada e de uma novela que D. José de Noronha, fidalgo de pouca etiqueta, interrompeu a “estridente mastigação”, cuidando de saber se a prima Mécia já havia provado galinha mourisca. A receita com que Camilo nos presenteia talvez seja recriada pelo chef António Pinto numa das noites de tertúlia que se anuncia para o mosteiro de Ancede, no último fim de semana do mês.
Nessa tertúlia participará o investigador Jorge Sobrado, vice-presidente da CCDR-Norte para a Cultura e reconhecido camilianista, que acaba de anunciar “um dilúvio editorial” a pretexto do bicentenário daquele a quem Teixeira de Pascoaes apelidou de “penitente”. Sobrado anunciou a reedição de 14 obras de Camilo, na sequência do ressurgimento de “No Bom Jesus do Monte” e desafiou os parceiros do projecto agora posto em marcha a devolverem as obras de Camilo “às ruas, às praças, aos cafés, às escolas, às bibliotecas e às livrarias”, de tal modo que todos, os que leram e os que não leram ‘Eusébio Macário” ou ‘A Queda de um Anjo’, esbarrem em Camilo.
Talvez numa das noites de tertúlia alguém replique aquela fala do fidalgo de mais apetite que maneiras: “Meus amigos, nada de engulhos! É comer o que aparece e fazer de conta que a barriga é alforge de pedinte”. Será coisa para o chef António Pinto mandar servir um pudim à madre Paula, iguaria do receituário camiliano. E pode ser que Etelvina, repetindo as noites de Lamego, decida comer o pastel. Já misturo ficção com apetite, o que for soará.
Então e no bicentenário não há, como houve no centenário, tolerância de ponto nas repartições públicas, nem feriado nos estabelecimentos de ensino? Admito que tal pergunta ocorra a muitos. Guardai, entrementes, a moção de censura. Desta vez, o 16 de Março calha a um domingo. E se o dilúvio encher a arca de leitores, no tricentenário vai ser um fartote.