Na emissão “A1 Doc” de ontem, a repórter Linda Luz levou-nos ao ensaio da mais ocidental banda portuguesa. A Filarmónica União Operária e Cultural Nossa Senhora dos Remédios, na Fajãzinha das Flores, é o último sopro de vitalidade com pauta, na ilha que, não há muitos anos, chegou a ter cinco bandas. Esta é, agora, a última banda da ilha, reunindo sob a batuta de um jovem maestro outros ainda mais jovens músicos que serão obrigados a mudar de ilha quando chegarem ao mais alto do Pico dos Sete Pés da oferta local de ensino. Terão de ir para Ponta Delgada ou para mais longe ainda. Há uma Ponta Delgada nas Flores, mas é uma freguesia pequena. Do Farol do Albarnaz, ali perto, ou do Miradouro do Ilhéu Furado, ainda mais perto, o mais que se vê é mar a perder de vista e uma ilha ainda mais pequena. O Albarnaz é o apelido da luz mais poderosa da ilha, talvez das ilhas todas sobre as quais pousou o olhar comovido do grande Jorge Barros. Albarnaz poderia ser apelido de Linda, já digo porquê.
Nesta ilha bordada de azáleas, a última banda, a filarmónica mais a ocidente, abre as portas à rádio. Linda Luz faz perguntas iluminadas, alguém que faz perguntas deste modo poderia reabilitar o desaparecido jornal O Monchique, esse sonho maior do que o ilhéu que lhe deu nome.
Trompetes e flautas ganham fôlego na sala de ensaio da rua do Canto (belo nome para sede de uma banda), o maestro harmoniza os acordes nos gestos que imaginamos firmes, Linda Luz chama para a conversa os mais antigos, um que já foi a Fall River, e a Vermoil e a Marrazes e às festas da Graciosa, abre-se-lhe um sorriso na evocação dos dias andarilhos. O mapa do mundo é tocado pelos ofícios que nos levam porta fora.
Estava a ouvir a reportagem e a lembrar de quando fiquei três dias por minha conta e risco nas Flores onde não pousavam aviões, tamanho o vendaval. Lembro-me de que havia muita gente na ilha com apelido Toste, lembro-me de ter ido a pé até à pedra do capitão Lang a
fantasiar naufrágios, lembro-me do miradouro do Ilhéu Furado, lembro-me da Rocha dos Bordões, lembro-me das azáleas, lembro-me da base francesa onde os jornalistas puderam entrar quando os ventos deixaram pousar Mário Soares em presidência aberta.
Em fundo, jovens que gostam de música e do sentido de comunidade que a Filarmónica lhes proporciona, dão vento ao veleiro dos próprios sonhos. O maestro fala do que seria necessário para que a música não tivesse fim, na ilha que já teve cinco filarmónicas. Sublinha a ideia de que a ilha fica no fim de um duro mar de oportunidades perdidas. E lança para a conversa esta frase: “A ilha mais próxima é muito longe”.
Ele não pretende desmentir a ideia sustentada por Raul Brandão que há um século ali chegou a espantar-se com as tantas cores sobre as águas e deixou escrito que “o que as ilhas têm de mais belo e as completa é a ilha em frente”.
Ele talvez tenha dito de outro modo, o que Manuel Alegre nestas ilhas pressentiu. Que “o melhor de uma ilha é a ilha ausente, aquela que talvez sequer exista”.
Texto e programa de Fernando Alves
