Por que letra de médico é ruim? – perguntava, há pouco mais de uma semana, a edição brasileira da BBC News. Anotei a pergunta, à mão.
Folheando, esta manhã, o caderno onde anotara com a minha cada vez mais impenetrável caligrafia, esta pergunta e as respostas que ela trouxe por arrasto, dei comigo a pensar que médico teria eu dado, que médico teria eu podido ser. E lembrei-me de uma boa conversa que Isabel Cunha teve com o médico e poeta João Luís Barreto Guimarães num Dia da Escrita à Mão, trazendo à tona os magníficos cadernos do poeta e as suas canetas-bisturi.
Uma semana depois de ter anotado no meu caderno a pergunta e as respostas da BBC News brasileira ia desesperando com a minha letra de médico, com a clínica geral dos dias, tão pela rama; na rama, na pele, procurando a possível profundidade, um porquê, alguma coisa que torne o tempo livre menos ocioso, que obrigue a preguiça a alguma ginástica, ainda que pouca e breve, acima de tudo livre. Aqui chegado, anoto (antes que dela me esqueça) uma ideia partilhada esta manhã pelo filósofo Victor Gómez Pin com os leitores do jornal El País. Ele acredita que “o tempo livre já não é livre” porque “o ócio pode embrutecer mais do que o trabalho”. Anoto à mão, procurando que a letra de médico não me traia, adiante. E atrevo-me a acrescentar pergunta minha, corda esticada dentro de caderno meu, cá com os meus botões: “talvez devêssemos trabalhar um pouco mais o nosso tempo livre, fazer dele uma divertida trabalheira; e, do mesmo passo, aliviar a carga do trabalho, tentar descobrir no trabalho a possibilidade de divertimento, o jogo, o eureka do acaso e do gozo”.
Não sei como dizer isso aos homens do lixo, ou aos cuidadores da aflição alheia, tantas vezes alvo do descuido geral, mas a letra de médico talvez torne ainda mais intraduzível para mim mesmo o devaneio que deixo correr no ecrã do computador. Não tenho receita. Apenas anoto. E pergunto.
Vem este fio puxado a propósito de uma ideia colhida há pouco na edição digital do El Mundo. O jornal escutou Miguel Angel Martinez Gonzalez, um famoso epidemiologista, catedrático de saúde pública da universidade de Navarra. Ele chama a atenção para a “epidemia de entontecimento massivo” em curso. Ela progride “através dos ecrãs”.
O professor não usa de complacência no diagnóstico: os ecrãs no ensino são armas de destruição massiva”.
Por isso, o professor de saúde pública estabeleceu com os seus alunos um pacto por escrito estabelecendo que se retirem os computadores portáteis das aulas e se volte a tomar apontamentos à mão. O epidemiologista desafia os pais a que façam o mesmo em casa. Por vários motivos, um deles elementar: escrever à mão estimula a aprendizagem. Olho a mancha do texto, a pauta em que defino a cadência das palavras, e anoto: recuperar a caligrafia perdida.
Há uma foto em que João Luís Barreto Guimarães escreve junto à água, gaivotas por perto. Reencontro essa foto, ilustrando a conversa de há um ano, a conversa em que o artesão da palavra assina de viva-voz as suas receitas poéticas. E regresso ao caderno da caligrafia emaranhada, resistindo à epidemia em curso. Perdido no emaranhado, está num verso de Irene Lisboa, escrito por certo à mão: “gostava de escrever com um fio de água”.