Ibiza tem praias de areia fina, festas intermináveis e antigas histórias de piratas. Mas pode acontecer que um dia destes acorde sem lagartixas. E essa será uma perda irreparável.
Há uma lagartixa endémica das Pitiusas, a sub-região das Baleares que inclui Ibiza. Essa espécie de lagartixas, única no mundo, espalhou-se pela ilha. Mas, conta o jornal El Pais, está a ser dizimada por milhares de cobras de ferradura que invadiram a quase totalidade do território e nem as pequenas ilhotas em redor escapam à voragem. Estas são cobras nadadoras, as lagartixas das Pitiusas estão seriamente ameaçadas.
O jornal El Pais conta que as predadoras das lagartixas foram introduzidas em Ibiza há duas décadas, por desleixo ou sacanagem e de nada parecem valer as campanhas de combate à praga que, entretanto, foram lançadas. As armadilhas, por mais milhares de cobras que tenham sido eliminadas, não indiciam resultados promissores. As cobras atacam de modo organizado, como um exército, como os vândalos que devastaram a ilha há pouco mais de 1500 anos ou como os mouros que a tomaram, entretanto, ou como as tropas de Jaime I de Aragão que delas, em seguida, se apossaram.
Os técnicos ambientais estão muito preocupados com a ameaça tão devastadora que põe em perigo o único vertebrado endémico da ilha, tão estimado localmente que se pode considerar um símbolo da identidade pitiusa. O que lá pode vir é a desgraça costumeira, uma quebra na cadeia alimentar: as lagartixas deixarão de travar a propagação de insectos e isso vai provocar novas pragas na agricultura. Chegou-se a um ponto em que a erradicação das serpentes invasoras parece já impossível e a sua propagação às ilhotas em redor mais do que certa, dada a circunstância de serem estas cobras excelentes nadadoras.
Gosto de lagartixas, de as ver deslizando nas paredes, virando de pantanas a lei da gravidade, delineando uma geometria vertiginosa que atordoa o mosquedo. E gosto delas porque me chamam para Manoel de Barros que, na infância, tanto brincou “a fingir que pedra era lagarto”. Esta notícia tê-lo-ia entristecido.
Quando o pai de Manoel decidiu iniciar uma fazenda no Pantanal, ele encheu a infância de espantos e bichos de todos os tamanhos. Numa entrevista, contou o que tinha à mão do olhar nesses dias longínquos: “Ali, o que eu tinha era ver a atrapalhação das formigas, caramujos, lagartixas. Era o apogeu do chão e do pequeno”.
Ora o chão de Ibiza, visto a partir desta notícia, não se reveste de qualquer apogeu. Tomando a bitola dos especialistas ambientais, mas também a dos poetas, é um chão desapossado de identidade. No Tratado das Grandezas do Ínfimo, Manoel de Barros explicava que poesia “é quando o homem faz sua primeira lagartixa”.
Entretanto entrámos no tempo dos predadores.