1.
Na sede da Caixa Agrícola de Torres Vedras, as casas de banho estão impecavelmente limpas.
Entrei ontem numa delas e uma senhora de bata estava a limpar a sanita.
Olhou-me e sorriu.
Não um sorriso qualquer, um daqueles especiais que nos ajuda a iluminar os quartos e corredores que já não nos lembrávamos que existiam dentro de nós.
2.
Pensei em Hiroyama, personagem imaginada por Wenders no magnífico “Dias Perfeitos”. Acompanhamos Hiroyama nas suas rotinas, na música que ouve no seu carro de limpezas, na merda que limpa das casas de banho públicas de Tóquio.
Pensei na sua solidão tão acompanhada, no que intuímos do silêncio que nos interpela, dos seus olhos tão abertos e atentos.
Ela, aquela senhora bonita de bata, sorriu-me.
E eu fiquei embaraçado com a sua grandeza, tão embaraçado que não lhe perguntei…
… como se chama?
Trocámos duas frases e apeteceu-me ficar mais, saber dela, convidá-la para almoçar ou dizer-lhe logo ali que ela era enorme, que era bonita, que a sua vida valia muitíssimo, tanto como a minha, senhorito que fala do sofrimento, que escreve sobre a nossa condição, mas incapaz de sorrir quando se suja, quando tem de fazer o que o contraria, o senhorito que apenas sai de casa bem perfumado e barrado de um creme que ajuda a pele a não descamar.
3.
Penso em Hiroyama e nela.
Que a ficção é, por mais grandiosa que pareça, bem menos forte do que a realidade.
A senhora da bata, talvez um pouco mais velha do que eu, ou um pouco mais nova…
… a senhora de bata que limpa, que sorri, que trata bem o mundo, que trata os senhores doutores e as senhoras doutoras como se fossem família, que riu ao ver-me aflito para entrar.
Saio já, menino.
Minto.
Não me chamou “menino”, mas foi “menino” que nitidamente ouvi. Como quando a minha avó existia tão gigante quanto pobre, a minha avó que podia ser a avó da senhora de bata, a mulher que deixa tudo cheiroso à sua passagem, a que lembrarei sempre que precisar de descer à terra.
Daqui a pouco, ao jantar, falarei dela aos meus mais pequenos.
Contar-lhes-ei a história de uma mulher que usava uma bata que servia para lhe esconder as asas secretas. Umas asas que trouxe de um planeta encantado e sem ponta de maldade.
Disponível posteriormente em Spotify, Apple Podcasts, YouTube e RTP Play.