1.
Não tenho saudades de um tempo que não vivi, mas gostava que o velho amolador de tesouras voltasse a soprar num pífaro que eu acreditava poder encantar serpentes e gigantes.
Não quero voltar a viver num mundo a preto e branco, mas adorava voltar a fazer “load, aspas, aspas” e marcar golos no Match Day onde os meus remates cruzados eram lendários.
Detesto quando falam de Salazar, quando dizem que no seu tempo é que era, que isto só lá vai com uma ditadura, mas dava tudo para ouvir outra vez a voz da minha mãe quando encomendava enciclopédias para que eu não me atrevesse a fazer amizade com a ignorância.
2.
Abomino o tempo em que mais de metade dos portugueses não sabia ler, mas recordo com nostalgia as vizinhas a bater à nossa porta e a entrarem para ver a novela ou as mercearias que vendiam fiado ou as antigas drogarias com frascos mágicos que eu pensava serem obra de feiticeiros e alquimistas.
Detesto os “pobrezinhos, mas honrados” e o “Deus, Pátria e Família”, mas nunca mais escrevi à mão e deixei de enviar cartas de amor.
Sim, escrevo-te todos os dias.
Postais.
Mas não os ponho no marco de correio.
Os meus filhos podem fazer coleções de cromos, mas nunca mais houve prémios – lembras-te dos brindes que saíam nas carteirinhas? – bolas, malas, livrinhos de pintar.
3.
Não quero tornar a ter medo, como os meus pais e avós tiveram.
Não quero ter uma vida fechada, aprisionada à nossa pequenez, com gente medíocre a ditar o que eu devo ou não fazer, mas seria tão bom poder ir hoje jantar Bacalhau à Lagareiro em casa da avó Alice, seria tão bom ouvi-la e ficarmos a ver televisão de mão dada.
Ou jogar às caricas com o brasileiro que era filho do dono do restaurante no fundo da minha rua.
Ou jogar à bola no passeio quando o nosso único problema era o momento em que um vizinho corria atrás de nós por termos partido o vidro da sua janela.
Ou ir à Feira Popular onde me assustava com o Poço da Morte, mas me deliciava com o carrossel onde podia dar grandes palmadas em bolas gigantes.
Ou voltar a ver as luzes da Árvore de Natal que já não são as de hoje por ter deixado de acreditar em contos de fadas.
Não tenho saudades do “Papão” e do óleo de fígado de bacalhau.
Mas tenho saudades de mim.
Quando ninguém me chamava Luís.
Quando todos os que me amavam diziam “Miguel”.
Sinto a falta desse miúdo que ambicionava ser ilusionista ou ponta-de-lança ou cantar no Central Park como o Paul Simon e o Art Garfunkel que venerava como se fossem amigos íntimos.
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