Remasterizados a 24 bits a partir dos masters originais, estão à venda a partir de 9 de Abril os álbuns de Zeca Afonso "Cantares do Andarilho" (1968) e "Contos Velhos Rumos Novos" (1969).
Ana Sofia Carvalhêda conversou com os autor dos textos que
acompanham a reedição da obra de José Afonso.
Cantares do Andarilho
José Afonso, 1968
O Adeus a Coimbra
"Uma história nunca começa exactamente no seu princípio. Começa sempre antes. E a de Cantares do Andarilho começa a desenhar-se à distância de alguns anos, ainda José Afonso não tinha partido para Moçambique, ainda não tinha sequer equacionado essa hipótese. O primeiro traço surge, talvez, no dia em que chega ao café A Brasileira, em Coimbra, e anuncia a um grupo de amigos que sabia ali encontrar: "Tenho aqui umas ideias novas que gostava de vos mostrar". Entre eles, Albano da Rocha Pato, jornalista do Primeiro de Janeiro em Coimbra.
José Afonso transportava as ideias todas arrumadas na cabeça, viola não tinha com ele. Rocha Pato, homem dado ao convívio e sempre disponível para todo o género de tertúlias, faz um convite que marcará em brasa o percurso de – tomemos-lhe a familiaridade – Zeca: "Vamos a minha casa que o meu filho tem viola". A história estava em marcha.
Em 1962, ao transpor a porta de casa de Rocha Pato, Zeca Afonso levava 33 anos e tinha atrás de si uma iniciação e elogiada passagem pelo fado de Coimbra. Ali, onde se juntara a António Brojo, António Portugal, Luís Goes e Sutil Roque, levantou uma voz de uma expressividade rara e comovente. Pertencia à chamada Segunda Geração de Ouro do fado da cidade universitária, uma paradoxal forma musical elitista e simultaneamente de alcance popular. Mas tratou-se de uma passagem, que não era homem de se deixar
prender, sobretudo pelas regras de um género com grilhetas de profundo conservadorismo. Em 1960, com o 45 rotações de Balada do Outono, começa a ensaiar uma fuga emancipatória. Daí que, em 1962, casa de Rocha Pato adentro, como escrevíamos, Zeca Afonso entre precisado de apenas uma viola. A guitarra portuguesa caíra. A música teria de ser outra.
À comitiva intelectual d!A Brasileira, juntou-se o filho de Rocha Pato. Rui Pato foi primeiro chamado e instado a trazer a sua viola ao "dr. José Afonso, que tem umas coisas para nos mostrar". Depois, ficou-se nas escadas, à escuta, e a deixar crescer em si a coragem para se dirigir ao "doutor". Irrompeu finalmente pela sala e pediu: "Você deixa que eu experimente esse acompanhamento?", lembra-se de ter perguntado. "Eu acho que pode estar melhor". Zeca apreciou a ousadia, passou-lhe a viola para as mãos e aquilo que lhe ouviu, de imediato, foi o acompanhamento que ainda hoje conhecemos como a viola de "Menino d!Oiro". "Eh pá, mas o puto toca isto bem!", terá exclamado de forma mais ou menos síncrona o grupo. Seguiu-se "Tenho Barcos, Tenho Remos". E depois "No Lago do Breu", e mais depois ainda "Senhor Poeta". Todos os quatro temas do EP Baladas de Coimbra. Rui Pato deu uma cama para as ideias de Zeca naquela mesma noite. Aos 16 anos, "além de andar a aprender guitarra clássica já andava nos fadunchos de Coimbra, nos grupos de fados do liceu", lembra. A experiência não era assim tão pouca, portanto. Terminada a sessão, não restavam dúvidas a Zeca – "É ele quem me vai acompanhar". E assim foi. Durante sete anos.
O início da parceria aconteceria com os temas daquela noite, registados em Baladas de Coimbra, título que se repetiria no EP seguinte, lançado em 1963, gravados ambos no Mosteiro de S. Jorge de Milreu, na margem esquerda do Mondego. Desse segundo disco faria parte um dos temas mais emblemáticos da obra de Zeca – "Os Vampiros". Pouco depois, em Maio de 1964, numa apresentação na Sociedade Musical
Fraternidade Operária Grandolense, o cartaz apresenta as suas composições como "as suas belas e estranhas baladas" perpassadas por "todo o sentido poético-trágico da sensibilidade do nosso povo". Nesse mesmo ano, mais quatro temas registados em Cantares de José Afonso, disco em que o autor deixa de ser-nos apresentado como "dr." José Afonso. O pormenor é tudo menos isso. Não é o grau académico que é apagado da sua música, é o peso da cidade que é convidado a sair e vê a porta fechada na sua cara. "O Zeca desiste de Coimbra", garante Rui Pato. "Coimbra, ao fim e ao cabo, era a matriz que havia na sua voz e na sua maneira de cantar. Mas os temas, tanto musicais como as próprias poesias, já não tinham nada que ver com Coimbra e as suas tradições". Em entrevista ao Se7e, em 1980, Zeca identifica com clareza o ponto de cisão: "A primeira fase, lírica, está ligada ao fado de Coimbra, à necessidade de cantar, sobretudo ao ar livre, ao conhecimento físico do país. Depois segue-se outra
fase que é declaradamente política, de uma actividade de franco-atirador que se inicia com a canção "Menino do Bairro Negro! [Baladas e Canções]".
"Não racionalizei muito bem a ruptura que estava a ser feita", confessa o viola. "Mas o Zeca sabia perfeitamente. Ele era um homem ligado ao fado e as pessoas estavam habituadas a vê-lo no registo do fado. E Coimbra até 1969 era uma cidade medieval, aristocrática, universitária – no sentido jesuítico do termo -, praxística, tradicionalista.
Quando o Zeca faz isto é um escândalo. As pessoas diziam-me "Eh pá, andas para aí a fazer umas maluquices com o Zeca, o que é isso?!". E é então que enquanto o "doutor" fica pelo caminho, trancado no passado português, o homem segue para África.
É Agosto de 1964 quando José e Zélia Afonso partem no Angola-navio para o Moçambique-país-à-espera-de-o-ser. A bordo, Zeca vai escrevinhando canções sem saber ainda o que lhes fazer. Ao deixar Portugal, o músico sofria de um severo bloqueio à sua actividade de professor e de uma sobrevivência ao nível do mais básico por conta da música. As canções eram pagas a troco de um copo de vinho tinto e um pão com chouriço se em concerto, ou a troco de mil escudos – 200 para Rui Pato- por cada disco gravado. "O Zeca achava que devia ser mais bem pago", confirma Pato. "E realmente era miseravelmente pago, era uma gorjeta aquilo que lhe davam".
Caem já as folhas no calendário de 1967 quando José Afonso regressa a Portugal e ao ensino – primeiro para o Algarve, seguidamente para Setúbal -, esperado por um contrato a firmar com Arnaldo Trindade, da Orfeu, segundo o qual fica obrigado a lançar um novo LP todos os anos, mas que lhe providencia – sob a forma de um salário – a estabilidade para que a música possa tomar o lugar da sobrevivência no lugar das suas preocupações. É assim que nasce o LP Cantares do Andarilho, prolongamento da "heresia" de dispensar a guitarra portuguesa – Zeca dizia que era tocada com aramesfarpados. "É a altura do George Brassens, do Bob Dylan, dos espanhóis e dos cubanos que aparecem muito com este modelo de cantautor que se acompanha com viola", lembra Rui Pato. "Não era preciso mais. Só mais tarde é que a estética evoluiu e tinha de ser de outra maneira". A opção levaria a que só nesse 1967 Zeca tivesse actuado em Coimbra com o seu companheiro de palco, após cinco anos a serem chamados por muitos movimentos cine-clubistas, alguns clubes de campismo, algumas associações operárias e um ou outro movimento estudantil em Lisboa. "O Zeca cantava muito no Barreiro. Faziam lá uma festinha, qualquer coisa, chamavam-no e acabava por ser um comício com cantigas dele".
É precisamente neste contexto, de sessões culturais atravessadas pela palavra politizada, que Zeca se cruza com o escritor Urbano Tavares Rodrigues, quadro do PCP. Um cantava, o outro discursava. "Eu abusei um bocadinho da amizade porque ele
era muito generoso – eu levava-o para toda a parte e ele não pedia nada", diz Urbano.
Foi nesses ambientes, de resto, que se foi forjando a ligação entre os dois que conduziria ao pedido de Zeca para que Urbano escrevesse o texto de apresentação de Cantares do Andarilho. "Fomos falando da música dele, das origens, de como tinha
nascido, da canção de Coimbra, da balada, dos apports estrangeiros, africanos, das coisas da Beira que ele tinha recuperado, coisas camponesas… Era impressionante o que ele ia buscar a muitos lados", recorda. Ou, em resumo, segundo o escritor, "a
música dele não é sujeita a dogmas". A esse ontem de 1968 em que escreveu que "José Afonso, trovador, é o mais puro veio de água que torna o presente em futuro, que à tradição arranca a chama do amanhã", junta hoje a "absoluta consciência de que era uma figura imortal".
Em estúdio, a postura de Zeca era uma extensão do seu rigor habitual, lutando por ajustar a música fixada na gravação àquela que escutava com clareza na sua cabeça.
Por falta de formação formal, a música germinava em Zeca agarrada a ideias que cantarolava frequentemente ao seu viola para que este as traduzisse no instrumento.
"Só aí, quando gravámos o primeiro LP, é que ele comprou um gravador; outras vezes fazia uns bonecos de uma viola, onde havia de se pôr os dedos", diz Rui Pato. Com Cantares do Andarilho dá-se também a aposta clara em estúdios de gravação
profissionais. Diferença de vulto quando os dois primeiros EP haviam sido registados no tal convento velho e desabitado perto de Coimbra, "com um gravador portátil que vinha do Porto, numa furgoneta 4L, e nos momentos em que não passava nenhum automóvel naquela estradita ao pé do convento a gente gravava uma música".
Cantares do Andarilho é gravado nos estúdios Polysom, em Lisboa, com o engenheiro de som Moreno Pinto, que Rui Pato recorda como "um anjo da guarda", uma vez que os ajudava generosamente a contornar cada dificuldade, por pequena que fosse. "Estar com ele era estar com um amigo no estúdio, não era um técnico". Além das questões técnicas, aliás, Moreno Pinto mostrar-se-ia fundamental em contrariar as inseguranças e hesitações que segundo Pato assolavam regularmente a extrema exigência de Zeca em estúdio. "Passeei muito com ele lá fora porque não queria gravar. Dizia que tinha comido e a comida estava a subir-lhe à cabeça, que não estava bem-disposto. O Moreno Pinto tinha muita paciência para lidar com a situação e como já estávamos a entrar numa era de gravação multipistas, fazia umas repicagens à base da tesourinha, com grande habilidade, e o Zeca ficava todo contente".
Um dos temas incluídos em Cantares do Andarilho, "Vejam Bem", havia sido pensado originalmente para participar no Festival RTP da Canção. Os mesmos amigos de A Brasileira que assistiram ao nascimento de um novo Zeca Afonso, haviam de incentiválo a concorrer e como a resposta do músico aconteceu sob a forma de pergunta "o que é preciso fazer?", a resposta seguinte foi colocada nas mãos de Rocha Pato. O jornalista telefonou aos colegas do Primeiro de Janeiro em Lisboa e estes informaramn o que era necessário enviar uma cassete e uma partitura dentro de um envelope sem
nome. "Partitura?!" – olharam uns para os outros. "Mas quem é que pode saber fazer uma partitura?".
Talvez o senhor Pires, vendedor numa loja de electrodomésticos da cidade, a quem frequentemente Zeca e Rui Pato compravam uns discos. Acontece que o homem tocava saxofone na banda da Pampilhosa – o que, desde logo, indiciava alguns conhecimentos mínimos de teoria musical. Chegados à loja, cumprimentaram o vendedor e logo fizeram soar um "Oh senhor Pires, se a gente lhe cantarolasse uma cantiga você passava isso a partitura?". "Então não passava!". O resto vem pela voz da memória de Rui Pato: "O Zeca sentou-se lá na loja dos frigoríficos, comigo e com o senhor Pires a ouvir, ele ia cantando e eu com a viola ia ajudando, e o tipo escreveu aquilo tudo". A música acabou por não ser seleccionada, num ano (1967) em que o vencedor foi Eduardo Nascimento com "O Vento Mudou".
E o vento, de facto, começava a mudar. Na vida de Zeca Afonso, na sua música, em toda a que se fazia à sua volta e, em breve, no seu país."
Gonçalo Frota, Fevereiro de 2012
Alinhamento:
1. Natal dos simples
2. Balada do sino
3. Resineiro engraçado
4. Canção de embalar
5. O cavaleiro e o anjo
6. Saudadinha
7. Tecto na montanha
8. Endechas a Bárbara Escrava
9. Chamaram-me cigano
10. Senhora do Almortão
11. Vejam bem
12. Cantares do andarilho
Inclui textos exclusivos da autoria de Gonçalo Frota e Pedro da Silva Martins.
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Contos Velhos, Rumos Novos
José Afonso, 1969
Uma janela com vista para África
"O corpo voltou antes. A cabeça ainda estava um pouco por lá, pelas terras de Moçambique. E demorou uns meses a aclimatar-se, a perceber como trazer África para dentro das canções. Depois da consumação de um primeiro movimento de libertação do
fado de Coimbra, em Cantares do Andarilho, José Afonso ensaia um tímido mas irreversível passo para o desconhecido, não se deixando constranger por um novo colete de forças criativo na forma das baladas coimbrãs. Em vez disso, escancara a sua
música às influências africanas, ao mesmo tempo que reforça com um cunho pessoal e magnânimo a sua relação com a interioridade portuguesa. E esse é outro gesto desafiador para a altura. Se hoje sintonizar os ouvidos na ruralidade e na tradição remota parece uma decisão natural, fácil e desempoeirada, em pleno Estado Novo a tradição trazia injusta e pesadamente anexado um castigo sob a forma de um dedo em riste apontando uma acusação de conservadorismo e reaccionarismo (palavras fora do alcance de José Afonso).
"Acho que nessa altura duas pessoas influenciaram bastante a utilização de algumas músicas tradicionais, o enriquecimento da música portuguesa fora daquilo a que os meus colegas da altura chamavam o nacional cançonetismo. Foi o Zeca Afonso que conseguiu realizar com muito sucesso o aproveitamento dessa herança da música tradicional portuguesa. E depois houve o Michel Giacometti". Na opinião de Sousa Colaço, radialista no Rádio Clube Português e músico que começa em Contos Velhos, Rumos Novos uma breve colaboração com Zeca, a música tradicional portuguesa tudo deve a Giacometti e a Zeca por não ter desaparecido longe dos ouvidos do país e, em vez disso, ter passado a habitar o espaço popular e urbano.
Em Novembro de 1981, em entrevista a Belino Costa publicada no jornal Se7e, Zeca recordaria assim este período pós-regresso de Moçambique: "Passei uma fase que de certo modo me definiu como cantor de protesto, onde me afastei das minhas origens coimbrãs". Esse afastamento dá-se sobretudo a partir de Contos Velhos, uma vez que Cantares do Andarilho era ainda um primeiro rechaçar dessa influência e cujo escândalo se devia em grande parte à recusa liminar do som da guitarra portuguesa.
"Antes das origens coimbrãs havia as origens africanas, é bom dizer-se", frisava na mesma entrevista. Mas a cisão com a matriz musical de Coimbra não se dá em incompatibilidade violenta. "As músicas aparecem como dados biográficos", acredita. E,
de facto, a sua vida já nada tinha que ver com o período estudantil. "[No fado de Coimbra] Tudo se passa no melhor dos mundos. É a amada, o amor, os olhos negros ou azuis". Estas temáticas começam a deixar-lhe um sabor amargo na boca e não há outra opção senão cuspi-las. A vida – a impossibilidade com que esbarrou repetidamente de seguir a carreira de professor, a experiência moçambicana que o pôs em contacto próximo com a luta dorida de um povo, as suas incessantes dificuldades económicas graves e que o tornavam incapaz de produzir sustento para os filhos – exigia-lhe outras canções. E Zeca teve de dar ouvidos à vida, cantando o que lhe era
próximo.
A investida criativa de José Afonso é tão claramente intencional que o próprio título anuncia os "rumos novos" aqui em descoberta. "Já havia influências africanas, claro", admite Rui Pato. "Já tenho de tocar marimbas e harmónica, e é aqui que conheço o
Fanhais". Francisco Fanhais, na altura padre na Margem Sul, recorda o viola, "vai de lambreta e sotaina ver a gravação para os estúdios". Mas ao chegar, a sua ideia de sentir o ambiente de uma gravação de Zeca Afonso em estúdio rapidamente é transformada numa intervenção musical efectiva. Mal entra, durante a gravação de "S. Macaio", Zeca grita-lhe "Ó Fanhais, você sabe tocar bombo?". Na ausência de um "Não" firme o instrumento fica prontamente atribuído – "Então é você que fica com o bombo".
O sonho rítmico que Zeca pretende alcançar deixa de ser uma miragem e ganha forma. A viola deixa de ter o exclusivo do acompanhamento – até Bob Dylan o fizera, mas no seu caso teve de ouvir chamarem-lhe Judas – e passa a estar rodeada de outros elementos que empurram as canções para um novo e estimulante cenário.
A primeira gravação de Fanhais com o amigo Zeca é, portanto, pouco mais do que acidental. Naquele momento Pato andara já a sondar o recepcionista, tentando desviálo momentaneamente dos seus afazeres para tocar bombo na canção açoriana "S.
Macaio". Fanhais, que nesse mesmo ano fora levado por Zeca do Barreiro operário, onde cantava habitualmente, ao programa Zip Zip, na RTP, integrara recentemente o grupo daqueles que juntavam a política às canções. Torna-se então, automaticamente, a pessoa certa para tomar em mãos o instrumento. "Entrei para o estúdio, deram-me um bombo para as unhas e lá me disseram qual era o ritmo para marcar", lembra. "Lá tentei do princípio ao fim manter o ritmo certo. Foi esta a minha primeira participação numa gravação do Zeca". A elas havia de voltar, mais tarde.
Na presença de Sousa Colaço – aqui creditado como tal; em Traz Outro Amigo Também aparece como Filipe Colaço – enquanto 2º viola, por outro lado, nada há de acidental e tem já que ver com o desenho sonoro imaginado por Zeca Afonso. Também estudante de Coimbra, de Engenharia Civil, Sousa Colaço é angolano de nascimento e milita neste período num importante grupo do yé-yé português, Os Álamos – primeiro mais na senda de Dick Rivers et les Chats Sauvages, Les Chaussetes Noires e
Shadows, depois mais Beatles, Crosby, Stills, Nash & Young, Jefferson Airplane e
alguma MPB.
Os primeiros encontros entre os dois acontecem precisamente durante a vida académica, antes de Zeca seguir para Moçambique, na companhia de Rui Pato e José
Niza. São encontros informais, fados e guitarradas alimentados por política – Sousa Colaço pertencia ao MPLA -, marcados frequentemente nas repúblicas esquerdistas de Coimbra, como a Rais-Parta, habitualmente ligadas ao CITAC (Centro de Iniciação
Teatral da Academia de Coimbra), ou nas instalações da própria Associação Académica de Coimbra. Os dois voltam a estar juntos em Setúbal, após o regresso de Zeca a Portugal. "Tivemos várias longas conversas em que ele me falava de dar um pouco de ritmo à sua música por via da sua experiência muito jovem em Angola e depois em Moçambique. Não ritmos africanos propriamente ditos, mas ritmos influenciados por África. No Contos Velhos, Rumos Novos já aparece alguma dessa influência rítmica e mesmo a melodia e a harmonização já têm uma influência vincadamente africana".
Rui Pato traz as marimbas – "porque é nessa altura que com o Adriano [Correia de Oliveira] meto-me a tocar viola baixo e flauta" – e Zeca quer pôr bombos, trompa, cavaquinho, chamando até a voz convidada de Teresa Paula Brito para ajudar em "Vai,
Maria Vai". Pato lembra que há na altura uma coincidência de vontades, entre a dele e de Zeca, e a dos amigos que os instavam a enriquecer a instrumentação. "As coisas começaram a tornar-se mais rítmicas, já não tão baladas, em que a viola soava bem.
Era necessário meter um pouco mais de ritmo, que a viola só por si era um instrumento limitado, e havia essas duas componentes: havia que mudar isto e, por outro lado, a própria estrutura melódica e harmónica das coisas já pedia que houvesse outro clima musical a acompanhar". "A partir daí", fala-lhe a modéstia, "começa a ser acompanhado por profissionais a sério".
Lançado em plena primavera marcelista, Contos Velhos, Rumos Novos antecipa um dia que, assim quis a História, calhou no 25º de Abril. "Qualquer Dia" não adivinha qual o dia em concreto, mas adivinha a sua proximidade e é como uma ampulheta a esgotar o tempo restante para a inevitabilidade de um povo erguer-se e, no contínuo desse movimento, arrastar consigo o tapete sobre o qual se equilibra o regime ditatorial. "Era de Noite e Levaram", por seu lado, é uma pouco codificada denúncia dos sequestros levados a cabo pela PIDE. Quanto a "Vai, Maria Vai", o próprio Zeca há-de afirmar mais tarde que "foi um pouco a sugestão desses ritmos suburbanos que me sugeriu o texto – mais um pretexto de reforço rítmico do que um conteúdo lógico para ser transmitido através da música". Os ritmos a que o músico se refere são os das "canções de origem africana eivadas de influências europeias" que ouvia no programa Hora Nativa da Rádio Pax, estação de rádio que sintonizava frequentemente enquanto viveu na moçambicana Beira, de frente para o Índico. Aos fins-de-semana, ia muitas vezes com o irmão João dos Santos – que tinha uma câmara de filmar com a qual rodava pequenos filmes
amadores – até ao bairro do Xipangara. A esse mesmo irmão, José escreve em 1970, referindo-se a Contos Velhos: "Gravei um disco com bombo, cavaquinho, gaita-debeiços, marimbas, reco-reco e lampião chinês. A coisa é nova para matar
definitivamente a choradeira das baladas".
Em Contos Velhos dá-se igualmente a única parceria criativa entre José Afonso e Ary dos Santos, num magnífico tema intitulado "A Cidade". Parte dos ensaios para o disco terá tido lugar na casa de José Santa-Bárbara, responsável pelo grafismo dos quatro primeiros álbuns de Zeca Afonso, no bairro dos Olivais, em Lisboa. Segundo contou Santa-Bárbara a José Niza, a atracção por percussões exóticas do músico tê-lo-á levado a gravar inclusivamente ritmos no abat-jour de um candeeiro da sala. Na
memória de Rui Pato, os poucos ensaios ter-se-ão dado em Setúbal, na casa de Zeca e Zélia, onde Pato passou as suas férias. "Tínhamos também dificuldade em ter um sítio onde nos pudéssemos juntar, não só pela pressão que havia sobre nós – pressão no sentido de dificuldade, receio, de algum de nós sofrer as consequências dos nossos encontros – e, por outro lado, a necessidade de uma certa clandestinidade em relação à polícia política, que estava muito atenta a tudo o que o Zeca fazia", acrescenta Sousa Colaço.
Por um não tão acaso assim, o ano de edição de Contos Velhos, Rumos Novos coincide com a eclosão da greve e crise académica de 1969, um prenúncio para o 25 de Abril.
Na sequência da recusa do ousado pedido do presidente da AAC, Alberto Martins, ao pretender usar da palavra na presença do então Presidente da República Américo Tomás, durante a cerimónia de inauguração da Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra, não só Martins como toda a direcção da AAC é expulsa da universidade.
Situação que arrasta consigo Rui Pato. Ele, que fora "como o garoto do Charlot atrás dele", atrás de Zeca, faz ainda uma tentativa para embarcar no passo seguinte da discografia do cantor. Mas a PIDE confisca-lhe tanto o passaporte e como a sua parceria com Zeca Afonso. Zeca, já se percebia, não podia parar. Londres esperava-o."
Gonçalo Frota, Fevereiro de 2012
Alinhamento:
1. Bailia
2. Oh! Que calma vai caindo
3. S. Macaio
4. Qualquer dia
5. Vai Maria, vai
6. Deus te salve, Rosa
7. Lá vai Jeremias
8. No Vale de Fuenteovejuna
9. Era de noite e levaram
10. Já o tempo se habitua
11. A cidade
Inclui textos exclusivos da autoria de Gonçalo Frota e Cristina Branco.
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Até Abril de 2013 serão igualmente reeditados os álbuns:
-"Traz Outro Amigo Também" (1970),
-"Cantigas do Maio" (1971),
-"Eu Vou Ser Como a Toupeira" (1972),
-"Venham Mais Cinco" (1973),
-"Coro dos Tribunais" (1974),
-"Com as Minhas Tamanquinhas" (1976),
-"Enquanto Há Força" (1978),
-"Fura Fura" (1979) e
-"Fados de Coimbra e outras Canções" (1981).
"De Capa e Batina", conjuntos de EPs de fados de Coimbra, também ficarão disponíveis nas lojas.