Milton Nascimento viu pela primeira a luz do dia numa favela do Rio de Janeiro, mais concretamente na zona da Barra da Tijuca, a 26 de outubro de 1942. E foi bem cedo adotado por uma família que tinha a música bem presente no seu dia a dia. Afinal, o seu pai adotivo era dono de uma estação de rádio. O pequeno Milton, a quem então chamavam Bituca, mudou-se com a família para Três Pontas, em Minas Gerais, onde cresceu, fez amigos, alargou horizontes e foi aprofundando o seu gosto pela música.
Em 1962, com apenas 15 anos, estava a compor a sua primeira canção (Barulho de Trem), numa altura em que integrava o grupo W’s Boys, no qual também militava Wagner Tiso. Poucos anos depois rumou a Belo Horizonte, a capital do estado, para estudar economia, acabando contudo a música por falar cada vez mais alto.
Fez então amizade com os letristas Márcio Borges e Fernando Brandt. Eumir Deodado, que Milton conheceu quatro anos depois de ali chegar, e de quem se tornou parceiro musical, seria importante colaborador logo no seu álbum de estreia, Travessia, editado em 1967. Então com apenas 19 anos, Lô Borges (irmão de Márcio) revelou-se uma figura em rota em sintonia com Milton Nascimento, que na sequência da aventura eletrificada no álbum de 1969 (que abria com Para Lennon e McCartney, uma canção que não escondia a admiração pelos Beatles), encontrou em volta deste conjunto de amigos os argumentos para um disco que poderia, por um lado, encontrar a síntese das suas referências e, depois, fixar uma nova visão.
É assim, do cruzamento desta história de vida com todo este conjunto de encontros que surge, em 1972, Clube da Esquina, álbum hoje reconhecido como um dos discos mais marcantes da obra de Milton Nascimento, assinado em parceria com Lô Borges. A “esquina” a que o Clube da Esquina se refere é na verdade uma esquina real. E podemos encontrá-la no cruzamento das ruas Paraísopolis e Divinopolis no bairro de Santa Teresa, na cidade de Belo Horizonte.
A um interesse sobre as ideias surgidas na música brasileira com a bossa nova e aos gostos pessoais pelos universos do rock e pelo jazz o coletivo que Milton Nascimento aqui juntou acrescentou ainda marcas de uma identidade mineira, carregada de memórias de culturas com ascendência africana e suas descendências, projetando assim no Clube da Esquina um ciclo de canções com uma dimensão social e política que acabaria por fazer deste álbum um retrato de um tempo e de um lugar.
O entusiasmo de Lô Borges pelos caminhos contemporâneos do pop/rock anglo-americano e as experiências colhidas ao longo dos anos por Milton Nascimento (incluindo referências das culturas latinas sul-americanas), juntaram-se aqui às contribuições dos restantes colaboradores em sessões de escrita e composição que tiverem em parte lugar numa casa de praia em Mar Azul, ainda em 1971.
Entre o ecletismo deste grupo de amigos e um certo sentido de ecumenismo cultural que ali acabava por traduzir uma reflexão sobre a cultura mineira (sem a contudo se limitar), o álbum Clube da Esquina foi determinante na definição de rumos futuros na obra de Milton Nascimento e hoje é reconhecido como um título de referência maior na história da música popular brasileira. A capa, que nasceu da fotografia de dois rapazes de uma pequena cidade do interior de Minas Gerais, tornou-se igualmente um marco iconográfico – pleno de significados – na história das capas de discos da música brasileira.
O disco traduz ainda o gosto pela partilha e colaboração que caracteriza muitos dos episódios mais luminosos da história da música brasileira. De resto, o gosto pela colaboração e até mesmo pela partilha do protagonismo conheceu desde então muitos outros episódios na carreira de Milton Nascimento, que colaborou já com nomes como os de Sérgio Godinho, Chico Buarque, Gal Costa, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Peter Gabriel, Duran Duran, Herbie Hancock ou Wayne Shorter, num percurso ainda ativo que, já este ano, o levou ao mais recente álbum do rapper paulista Criolo ou ao novo disco da portuguesa MARO.
Texto: Nuno Galopim