Pele de Homem tem feito correr muita tinta em vários países. Foi editado em França há dois anos e chegou a Portugal agora graças à Seita, depois de uma série de prémios e de vender mais de 130 mil exemplares. Esta história foi desenhada e colorida por Frédéric Leutelier, que assina como Zanzim, e escrita por Hubert Boulard, que não pôde testemunhar o sucesso da sua obra, já que morreu semanas antes da sua publicação.
Este é, de facto, um livro invulgar, dentro e fora da banda desenhada. A começar pela sua história, que se passa há uns séculos, e que nos fala de uma mulher, Bianca, que está prestes a casar com Giovanni. Um matrimónio combinado entre famílias para bem dos seus interesses, em que, como era costume, os noivos não se conhecem.
Perante isto, a madrinha de Bianca revela-lhe o segredo das mulheres da família: de geração em geração tem sido passada uma pele de homem. As mulheres podem disfarçar-se do sexo oposto e descobrir o que é estar daquele lado. Bianca pode, assim, conhecer o seu futuro marido, tornando-se em Lorenzo e passando completamente despercebida nesta outra pele.
É o que vemos também na impactante capa do livro: Bianca, nua, a vestir essa pele que trará tantos acontecimentos à sua vida. No entanto, as consequências da sua escolha não são aquilo que ela esperava: Lorenzo causa sensação na cidade e provoca grandes paixões e apaixonadas revoltas perante a hipocrisia reinante. E Giovanni acaba por se apaixonar por essa versão masculina da sua noiva…
Ao mesmo tempo que esta história de enganos progride, há outra tragédia em crescendo: a da ascensão do Frei Angelo, irmão de Bianca e representante maior do clero local, um homem que leva a cidade a um fanatismo conservador sem precedentes. Nas palavras de Bianca, o irmão já era, antes do poder, “um cretino arrogante, e não mudou. Os teólogos ensinaram-lhe a embrulhar os pensamentos perversos com palavras bonitas”. A escalada da repressão e do impacto do medo na população leva a alguns momentos difíceis de digerir.
O desenvolvimento da história, escrita de forma exemplar e com um impecável desenvolvimento das personagens, das principais às mais secundárias, é acompanhado pela arte extraordinária de Zanzim, fulgurante não só no que está no centro da imagem, mas também nas narrativas visuais secundárias que se vão construindo, por exemplo, nas cenas passadas no bar em que os homens são livres de serem aquilo que querem ser. Sugiro uma atenção redobrada ao uso da prancha quando ela está livre dos constrangimentos das vinhetas, e ao traço, aparentemente ingénuo mas cheio de pequenos detalhes e surpresas.
Pele de Homem é um livro que só poderia ser feito hoje: a liberdade e aceitação para abordar temas ligados ao amor, aos costumes, à sexualidade, às consequências da hipocrisia, do conservadorismo e da manutenção das aparências, permitiu a esta dupla de autores tecer esta narrativa complexa e fascinante.
É um belo livro sobre o que somos, com uma sensibilidade maior e uma rara beleza que lhe permitirá mais do que uma leitura, mais do que uma interpretação, mais do que uma leitura rápida e descartável. É mais um daqueles livros para a lista, felizmente infindável, para mostrar a quem não gosta de BD que ela pode ser muito mais do que consegue imaginar.
Texto de Rui Alves de Sousa
A obra Pele de Homem foi destaque no programa Pranchas e Balões — disponível no RTP Play e emitido na Antena 1 à terça-feira, após as notícias das 20h00 — na emissão de 18 de outubro de 2022.