A primeira noite do maior festival de fado do mundo, o Caixa Alfama, encontrou casa cheia no bairro que lhe dá o nome, com palcos que começam no Terminal de Cruzeiros de Lisboa e se estendem até à Igreja de Santo Estevão (nome do fado icónico de Fernando Maurício — o grande homenageado desta noite).
Foram várias as celebrações no primeiro dia de festival: os 50 anos de carreira de António Pinto Basto, a festa-concerto entre amigos de Buba Espinho e a Alfama de sempre de Camané.
A poucos passos do seu primeiro Coliseu (estreia-se em nome próprio na sala a 18 de janeiro de 2025), Buba Espinho abriu o palco principal Caixa Alfama. A casa cheia que o recebeu cantou de cor canções como “Casa”, que partilha com os D.A.M.A., ou o clássico de Vitorino, “Menina Estás à Janela”, a versão também com os D.A.M.A. e os Bandidos do Cante. Trouxe-nos um repertório cheio de canções do disco homónimo, como o fado ao piano, “Refém”, ou os mais clássicos “Enigma” ou “Zé de Alfama”. “Loucura”, fado de Júlio de Sousa popularizado por Mariza, recebeu uma versão especial que mereceu uma ovação de pé.
“Volta” (2023) também viu os seus êxitos em palco — “Folga de Arlequin” ou “Um dia hei de voltar” —, mas “Roubei-te um Beijo” foi, sem dúvida, dos pontos altos da noite. Em entrevista à Antena 1, descreve os seus concertos como uma festa com amigos e relembra com nostalgia os primeiros passos no fado em Alfama. Entre o fado e o cante alentejano, Buba Espinho descreve o concerto com que subiu ao palco do Caixa Alfama um “revisitar das memórias através das canções (…). É sempre muito bom sentir que as pessoas voltam a lugares onde já foram muito felizes através da minha voz, através da minha música”.
Ainda no palco principal, uma homenagem especial a Fernando Maurício trazida ao palco por Jorge Fernando e vários convidados que vêm das casas e noites de fado. Vitor Miranda, Jaime Dias, Pedro Galveias, Luís Matos, Ana Maurício (sobrinha) e Cátia Miranda partilharam o momento para dar voz a clássicos do “Rei do Fado”: “Boa Noite, Solidão”, “Igreja de Santo Estevão” ou “Moreninha Travessa” foram alguns dos fados homenageados à beira-Tejo, num concerto que viu o seu ponto alto numa poderosíssima versão de “Fui dizer-te adeus ao cais”, a várias vozes.
As novas gerações também deixaram a sua homenagem ao fadista — Francisco Moreira, Miguel Moura (que nos deixou um gostinho do seu fado com uma pequena versão de “Igreja de Santo Estevão” na nossa emissão especial), e Rodrigo Lourenço deixaram as suas versões no Palco Ermelinda Freitas, no terraço do Terminal de Cruzeiros.
Também para Camané, Fernando Maurício — tal como Carlos do Carmo, Amália, João Ferreira Rosa ou João Braga — foi um dos fadistas que mais ouvia. “O Maurício era realmente um fadista extraordinário. Um intérprete incrível do fado, com umas características fantásticas”. Conheceu-o muito novo, com nove ou dez anos, quando cantava aos domingos na Adega Mesquita. “Tenho um contacto com o Maurício desde muito novo. Depois, vinha ao Desportivo da Mouraria, ouvia o Maurício; vinha à coletividade de Alfama, ouvia o Maurício. Ensinou-me muita coisa”.
Regressar a Alfama é sempre causa de celebração para Camané que, desde muito novo, percorria os becos e vielas. “Com dezoito anos cantava na Parreirinha, no Embuçado, quando era da Zizi e do marido, dos pais da Carminho. Tenho muitas recordações boas de Alfama”. E as recordações sentiram-se em palco num concerto que misturou temas clássicos e mais recentes, e que recebeu a jovem fadista Beatriz Felício, que cantou com ele “Guerra das Rosas”, do álbum “Do Amor e dos Dias” (2010) e “Tão Triste”, letra e música de Paulo Valentim, original do disco de estreia homónimo de Beatriz. Sobre este dueto, que até já é recorrente, Beatriz Felício confessa: “essa é a maior responsabilidade de todas até hoje. Ser convidada do Camané pela segunda vez é fora de série”.
“Casa das Mariquinhas”, “Fado Cravo”, “Madrugada de Alfama” foram alguns dos clássicos a que Camané deu voz para um público de aproximadamente 4500 visitantes.
A festa fez-se tarde, mas fez-se. As velas de 50 anos de carreira de António Pinto Basto, que teriam sido celebrados em 2020 não fossem as circunstâncias, foram sopradas esta noite no Palco Lotaria (o Centro Cultural Dr. Magalhães Lima). “Os primeiros 18 anos, parece que foram em part-time”, diz-nos o fadista, só depois é que a carreira foi assumida a 100%, apesar de o primeiro disco ter saído em 1970. O Fado Vitória é a “sua praia” — já voou para outros territórios, gosta de cantar de tudo, mas fala-nos agora de um ciclo em oroboros: “se calhar, hoje em dia, já estou exclusivamente fadista. Dá-se a volta e acaba-se no princípio”.
O fado no feminino também se celebrou neste primeiro dia: Ana Sofia Varela, Marta Alves; Ana Rita Prada e Lenita Gentil, que passaram pelo nosso estúdio: gerações do fado que se cruzam e se celebram no Caixa Alfama. Lenita Gentil fala-nos num trabalho que está a desenvolver em homenagem a uma fadista muitas vezes esquecida — Fernanda Maria, que, apesar de já retirada há mais de 20 anos, “foi uma mulher castiça, que tinha fado na voz, em todos os poros”.
Por outro lado, Ana Rita Prada estreou-se no Palco Amália. Ainda sem disco editado, mas já no circuito das casas de fado da capital, augura-se para ela bom destino.
Texto de Kenia Nunes