Depois de o seu filme anterior, A Verdade (2019), ter explorado as fronteiras entre a realidade e a representação numa produção mais internacional protagonizada por Catherine Deneuve, o realizador japonês Hirokazu Kore-eda regressa ao seu tema nuclear e de eleição – a família. Broker – Intermediários é uma espécie de primo de Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões (2018), embora aqui em terreno um pouco mais seguro e enxertando uma costela policial sob a pele da narrativa principal.
O filme aborda um tema difícil e “invisível”, mas que, uma vez mais, serve ao realizador de pretexto para explorar uma nova variação do seu tema de eleição – a família, e principalmente as famílias acidentais e circunstanciais formadas por elementos que não mantêm relações de consanguinidade. A história retrata a realidade das caixas de bebés (espécie de versões modernas da roda dos enjeitados) aonde as mães que não podem cuidar dos filhos ou não os querem os deixam para serem recolhidos por instituições religiosas e de “caridade”. Só que nesta história, ao contrário do que sucede em 99% dos casos, a mãe regressa para procurar o filho recém-nascido que entretanto caiu nas mãos de dois “intermediários” cujo negócio ilícito passa por vender crianças no mercado negro a casais endinheirados e desesperados por adotá-las.
No entanto, os intermediários, Sang-hyeon (Song Kang-ho, o “pai” de Parasitas, de Bong Joon-ho) e Dong-soo (Dong-won Gang), acabam por convencer So-young (Ji-eun Lee), a jovem mãe (o próprio nome, embora coreano, parece-se com o inglês “so young”, em alusão à sua juventude), a juntar-se a eles, formando uma espécie de “equipa” que tratará dos “melhores interesses da criança”, “ajudando-a” a decidir o que quer com o argumento de que será melhor para o filho ser dado para adoção a um casal com bom nível de vida que poderá proporcionar-lhe uma boa educação e dar-lhe amor, evitando assim que caia no sombrio sistema de orfanatos sul-coreano. A ação passa-se inicialmente na cidade de Busan, mas o filme assume também uma vertente de road movie (ou, pelo menos, road-trip) quando este “gangue” unido pelas circunstâncias viaja em busca de potenciais pais adotivos para Woo-sung (o bebé) e, nesse périplo (físico e espiritual), acaba por estreitar relações e conhecer-se melhor, atingindo um ponto (provisório e efémero) em que chegam a parecer uma “família”…
Nesta história dolorosa com uma réstia de esperança, o próprio bebé acaba por ser um pequeno sol transitório em volta do qual gira uma artificiosa “família” destinada a uma duração breve – esse “artifício” de um pequeno clã ocasional joga também, como em A Verdade, com a ideia da “mentira” que imita uma realidade melancolicamente destinada a ser uma miragem. Mas, no entretanto em que se definem os destinos de cada personagem, e o tempo corre contra elas, há a ilusão de uma família composta por pessoas imperfeitas e erráticas mas semelhantes e solidárias nos seus problemas existenciais – e que julgam também que, à sua maneira, estão a fazer o bem. E o mais interessante de tudo é que o olhar de Kore-eda sobre elas é compassivo, sensível e humanista. A inteligência e a sensibilidade complexas e profundas do realizador afastam-no do julgamento moralista. Existe antes no seu olhar uma tendência para uma contemplação compreensiva das razões das suas personagens, mesmo que essas razões estejam arruinadas. No fundo, o que faria um deus com um grau de compaixão mais aberto do que o quase sempre limitado ângulo humano…
Texto de Nuno Camacho