Não será exagero dizer que, na edição do Festival de Cannes de 2024, o filme “Marcello Mio”, de Christophe Honoré, foi um dos momentos mais genuinamente emocionais. Nele encontramos uma homenagem tocante: Chiara Mastroianni, filha de Catherine Deneuve e Marcello Mastroianni (1924-1996), interpreta uma personagem que funciona (quase) como um duplo do seu pai.
É bem verdade: o rosto de Chiara conserva muitos traços que evocam o pai, de tal modo que, num misto de subtileza e carinho, Honoré a coloca a viver a odisseia de uma personagem que acaba por pedir que a tratem por… Marcello. Não é uma biografia, entenda-se; tem mesmo qualquer coisa de viagem fantástica, entre a comédia e o drama, em que são evocados títulos fulcrais da filmografia do actor, desde logo os que interpretou sob a direcção de Federico Federico Fellini, incluindo “A Doce Vida” (1960) e “Oito e Meio” (1963).
Figura emblemática de uma notável geração de actores italianos (incluindo Ugo Tognazzi, Vittorio Gasmann, Alberto Sordi, etc.), Marcello Mastroianni foi um fenómeno de versatilidade, embora apeteça dizer que quase sempre se distinguiu pelo seu minimalismo. Lembramo-lo, assim, em comédias como “Os Eternos Desconhecidos” (Mario Monicelli, 1958) ou em melodramas históricos como “Um Dia Muito Especial” (Ettore Scola, 1977, um dos vários títulos em que contracenou com Sophia Loren), sem esquecer, claro, as participações em clássicos que há muito superaram as barreiras do tempo como “A Noite” (Michelangelo Antonioni, 1961) ou “O Estrangeiro” (Luchino Visconti, 1967).
Curiosamente, e apesar do seu prestígio europeu e internacional, Mastroianni nunca pareceu muito empenhado em construir uma carreira em Hollywood, o que, em todo o caso, não impediu que obtivesse três nomeações para o Óscar de melhor actor, uma delas para o já citado “Um Dia Muito Especial” — as outras foram para “Divórcio à Italiana” (Pietro Germi, 1961) e “Olhos Negros” (Nikita Mikhalkov, 1987 — ver video).
Resultante de uma coprodução Itália/URSS, “Olhos Negros”, inspirado em contos de Tchekhov, é uma das grandes referências do capítulo “estrangeiro” da filmografia de Mastroianni. Sem esquecer, claro, o filme que encerrou essa filmografia: “Viagem ao Princípio do Mundo” (estreado postumamente, em 1979), de Manoel de Oliveira — a sua personagem cruza a lenda de Mastroianni com memórias do próprio Oliveira, e chama-se… Manoel.