O virtuosismo técnico dos filmes de Christopher Nolan torna difícil acreditar que não tenha frequentado nenhuma escola de cinema. Contudo, à imagem de nomes como Quentin Tarantino ou Pedro Almodóvar, o cineasta anglo-americano é de facto um autodidata. De resto, é mesmo um exemplo perfeito do quão longe o engenho e a paixão podem levar um artista. Passou a infância a fazer filmes de stop-motion com uma câmara Super 8, o que denotava já um espírito explorador, tendo revelado, numa entrevista à Criterion, que nunca deixou de querer evoluir. E se há cineasta em que podemos falar de evolução, sendo quase um case study no que toca à ambição, ele é sem dúvida Christopher Nolan. Aliás, quem poderia dizer que o realizador que em 1998, com 28 anos, firmou uma pequena e modesta lança na fímbria do território da sétima arte estava destinado a conquistar os cumes das suas mais altas montanhas? Na verdade, na base do lançamento da sua carreira, após estudos de literatura e três curtas-metragens, está um filme tão obscuro e de nicho como Following, um conto noir de 70 minutos, a preto e branco, com atores desconhecidos e um orçamento ínfimo que se tornou objeto de culto e que, pelo seu cunho independente, talvez não fizesse adivinhar logo ali a robustez da futura obra do realizador.
Mas foi o seu segundo filme, o radicalmente não-linear Memento – com Guy Pearce no papel de um homem amnésico em busca do assassino da sua mulher que se guia por notas escritas para si próprio para saber o que aconteceu –, o seu primeiro sucesso comercial (e que marcou o início da colaboração com o seu irmão Jonathan, cujo conto Memento Mori daria origem ao filme). A partir desse filme-revelação toda a carreira posterior de Christopher Nolan foi uma ascensão vertical. Entretanto, já neste novo século, que o veria tornar-se um dos cineastas mais cotados em Hollywood, pavimentou o caminho para o sucesso com o subestimado Insónia (2002), um remake de um filme noir norueguês (e a única obra cuja narrativa não teve o seu cunho) com Al Pacino no papel de um polícia corrupto à deriva num Alaska insone e sem noite. De resto, foi esse sucesso que deu ao realizador o peso e o poder de influência para tomar as rédeas daquele que era, nessa altura, um franchise decrépito: o Batman da DC Comics.
Desde logo, Batman – O Início (2005) contribuiu para fazer esquecer a memória dos desastrosos e quase “degradantes” Batman para Sempre (1995) e Batman e Robin (1997), de Joel Schumacher. Não sendo sequer um fã de comics e de super-heróis, Christopher Nolan conseguiu porém revitalizar o universo do justiceiro de Gotham City. Em primeiro lugar, por se tratar de um super-herói sem superpoderes, o que lhe permitiu uma abordagem mais realista, pragmática, terrena e com uma gravidade e um negrume que devem mais ao thriller noir do que ao clássico filme de super-heróis. Mas seria com o segundo filme da trilogia, O Cavaleiro das Trevas (2008), que teve ainda de permeio O Terceiro Passo (2006), sobre dois ilusionistas rivais, que mudaria o próprio paradigma dos filmes de super-heróis ao ir às origens mais “sérias” da personagem. O filme faturou mil milhões de dólares em receitas de bilheteira e obteve oito nomeações nos Óscares (falharia a de melhor filme, o que contribuiu também para alargar o número de filmes a concurso nessa categoria), com Heath Ledger, que faleceu antes da estreia, a merecer um Óscar póstumo na categoria de melhor ator secundário.
Porém, se a trilogia de Batman o trouxe para o mundo dos blockbusters, foi com A Origem (2010) que o realizador atingiu realmente a maioridade como maximalista e autor de épicos modernos. É conhecido o seu apreço por cineastas magnificentes como Ridley Scott ou Michael Mann, mas neste thriller onírico é uma vez mais a dimensão psicológica e as suas alterações, assim como as “manipulações” e paradoxos do tempo (temas caros ao realizador), o que está em jogo através de uma história de espionagem que passa pela capacidade de entrar nos sonhos alheios. De resto, a questão do tempo, uma das suas grandes obsessões (há mesmo quem lhe atribua o “título” de “mestre do tempo”), está também presente no seu filme de 2014 Interstellar, que concilia de forma mais “temperada” o lado cerebral do realizador com uma dimensão mais emocional que passa por viagens no tempo e “travessias” de buracos negros em busca de entes queridos.
Mais recentemente, Christopher Nolan realizou o épico de guerra Dunkirk (2017), cuja narrativa se divide, como se de uma visão prismática se tratasse, por três planos e perspetivas diferentes de um vasto cenário de guerra (terra, mar e ar). E antes do muito aguardado Oppenheimer houve ainda lugar para Tenet, um puzzle temporal que, mesmo não se percebendo toda a intricada trama e as premissas da inversão temporal, é uma “experiência” cinematográfica estimulante que agarra do primeiro ao último segundo. Embora sem uma receção tão entusiástica, não deixa de ser uma lição sobre como segurar uma audiência. E essa é também uma das imagens de marca do cineasta (para além do hábito de recorrer a uma série de bons atores) – uma estimulante relação com os espectadores que jamais os dececiona e lhes oferece a garantia de um entretenimento com qualidade e nunca desprovido de inteligência.
Texto de Nuno Camacho
Oppenheimer, o mais recente filme do realizador Christopher Nolan, é um dos destaques no próximo episódio de Duas ou Três Coisas, com João Lopes e Nuno Galopim.